quarta-feira, 9 de maio de 2012

Uma visão ultrapassada da psicanálise Para responder ao Nouvel Observateur do dia 19 de abril de 2012

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Clotilde Leguil

No momento em que o próximo Congresso da Associação Mundial de Psicanálise vai tentar tirar consequências das transformações da ordem simbólica no Século XXI, que não é mais o que era, questionando-se sobre as mudanças que nosso mundo contemporâneo introduz no próprio tratamento, Le Nouvel Observateur do dia 19 de abril de 2012, apresenta um dossiê sob o título «Será que se deve queimar a psicanálise?», o que denota, além de um título algo medieval, uma visão da psicanálise muito marcada pelos anos cinquenta.

Lendo esse número, poder-se-ia acreditar que na França a psicanálise permaneceu igual ao que era na sociedade do pós-guerra: uma sociedade na qual o feminismo, as reivindicações a respeito da igualdade entre os sexos, e a emancipação sexual, - cujo movimento de 1968 se fez porta-voz -, ainda não existiam, uma sociedade na qual cada um tinha um lugar certo, papai, mamãe, as crianças e os tios e tias, uma sociedade cujo inconsciente ainda era arregimentado pelo Complexo de Édipo, na qual os sujeitos sofriam de excesso de autoritarismo por parte dos pais, as crianças não tinham direito à palavra na escola, e batia-se nos dedos dos alunos cada vez que transgrediam qualquer regra estabelecida, e na qual, face a esta ordem do mundo bem assegurada em seus fundamentos, a psicanálise podia representar uma emancipação.
Pois bem, caros amigos jornalistas do Nouvel Observateur, fiquem sabendo que os psicanalistas do Século XXI não se detiveram aí. A psicanálise não se cortou da sociedade, pelo contrário, ela não parou de se defrontar com os novos impasses criados pela civilização hipermoderna ocidental.
Primo Analisandos e analistas, estamos advertidos, mais do que qualquer um, darealidade das mudanças na ordem simbólica. Aliás, é o título de um livro que acaba de ser publicado, O Inconsciente de Papai e o nosso, do psicanalista Serge Cottet.
Deixando claro, para aqueles que não o notaram, que nosso inconsciente e, como consequência, nosso mal-estar e nossos impasses existenciais, não são mais iguais aos de nossos pais e mães, ainda menos aos de nossos avós e avôs. A psicanálise do Século XXI não opera mais no mesmo contexto da época de Freud ou do tempo de Lacan. E nós analisandos e analistas desta nova era estamos aqui para testemunhar isso.
Secundo Onde é que vocês viram que, para os psicanalistas de hoje, ahomossexualidade seria uma doença? Acordem! Os homossexuais, quando o desejam, fazem análise como os heterossexuais. Aliás, a gente também não vê em que o fato de ser homossexual poderia ser uma garantia contra a angústia e as dificuldades existenciais.
Como cada um, podem chegar a sofrer dificuldades em sua vida amorosa e sexual, profissional, familiar e desejar falar disso com um psicanalista. Melhor seria perguntar se os neurocientistas que procuram o gene da homossexualidade não estariam considerando o fato de ser homossexual como podendo assinalar uma anomalia genética…
            Tertio O que é que permite a vocês dizerem que nos Estados Unidos o discursoanalítico parece caduco? A própria Judith Butler, principal representante do Gender’s Studies, nunca se privou da contribuição de Jacques Lacan, quando reinterpreta o aforismo segundo o qual A Mulher Não Existe, para interrogar os transtornos de gênero. E se a desconstrução do gênero obedece a uma lógica diferente daquela da perspectiva lacaniana, quando se questiona sobre a feminidade e a impossibilidade de definir um universal feminino, lhe deve, no entanto, algo e se inspira nela em vários aspectos. Lacan não perdeu o encontro marcado com seu tempo, e até mesmo antecipou o futuro, aquele da época em que a pergunta sobre o que querem as mulheres se tornou uma das questões primordiais da civilização.
            «Encontro faltoso com a ciência» finalmente, segundo vocês… Por quê? Porque «os fundamentalistas do inconsciente continuam a recusar qualquer forma de avaliação». Que a psicanálise tenha de lutar contra as exigências científicas atuais, como aquela da avaliação quantitativa, que aliás parece ser a origem de muitos estragos no mundo empresarial (o que vocês como jornalistas não podem ignorar), não significa por isso que ela desconheça as preocupações centrais de sua época.Resistir à desumanização e à dissolução do sujeito recusando se transformar em objeto da estatística, não é ignorar o progresso, mas, pelo contrário, defender uma outra ideia da humanidade que a do homem neuronal ou do homem simples ser vivo como qualquer outro, que não teria mais nada a dizer de seu próprio destino. É não acreditar ingenuamente que qualquer remédio ou condicionamento poderá mudar, como por magia, nossa compulsão a repetir em nossa existência aquilo que nos faz sofrer. É acreditar que somos, em certa medida, responsáveis por nossa existência e que podemos, portanto, mudar alguma coisa. Quanto às questões levantadas atualmente pelo que se chama “tecno-maternidade”, ou seja, todas as novas possibilidades que a ciência oferece às mulheres afim de responder a seu desejo de criança, elas estão no cerne das preocupações dos psicanalistas, que não acreditam que os progressos científicos nos permitam fazer economia das consequências psíquicas e éticas deles decorrentes.
            Se a ciência procura tratar as angústias, as fobias, as depressões, as inibições, através da reeducação comportamental, a psicanálise continua a conferir valor à palavra. Mesmo assim, a maneira de falar de sua intimidade se transformou radicalmente, o que não torna o tratamento mais fácil, já que a mercantilização do íntimo, própria à nossa civilização, ao mesmo tempo acarretou uma perda do valor da palavra em si. Os efeitos da interpretação não podem mais se produzir segundo as mesmas modalidades que no tempo de Freud. É por isso que os tratamentos de sujeitos do Século XXI pouco se parecem, e de longe, com os tratamentos de uma Dora, de um homem dos ratos ou da jovem homossexual. E talvez tenha que dizer também que eles são diferentes dos tratamentos que Lacan e seus contemporâneos puderam praticar.
            Porém, defrontar-se com as modalidades atuais do sofrimento, acreditando ainda nos poderes da palavra numa época em que ela está desvalorizada, nem por isso significa  ter parado nos conceitos do inconsciente do papai, do Complexo de Édipo, e do desejo do pênis. Lacan, no decorrer de seu ensino, ultrapassou esta primeira versão da psicanálise, mostrando como as dificuldades que o próprio Freud encontrou, em torno da questão da angústia ou da feminidade, deviam indicar os pontos a partir dos quais a psicanálise precisava avançar.

Pois bem, quem ousaria dizer que nossa civilização voyerista e exibicionista, não suscita hoje mais angústia e mais mal-estar?

Será que é verdadeiramente provado, pela avaliação dita científica, que a palavra não tem mais nenhum valor já que se pode obter uma imagem do cérebro de quem se queixa de um sintoma?

Será que, sob pretexto de que é possível aparelhar-se com uma máquina para filmar os próprios atos, os sujeitos do Século XXI vivem melhor e são mais felizes?

Será que não podemos que ver as respostas dadas pela técnica ao mal-estar dos sujeitos contemporâneos são também uma forma de abandono e de deixar cair?

            A aversão pelas funções da palavra, que Lacan já tinha diagnosticado em meio ao próprio movimento analítico, parece ter se expandido a todas as esferas da civilização. Para ser educado, talvez melhor valha ser colocado diante de telas do que dever escutar um Outro; para ser tratado de uma depressão, talvez melhor seja ver imagens em um computador e indicar com um x os tipos de emoções sentidas, do que falar com um Outro. Ou seja, qualquer palavra se tornou suspeita em relação à exatidão da ciência e das máquinas.
Então, para encerrar, a psicanálise, que com certeza não tem resposta a tudo, que sempre trabalhou a partir de seus fracassos, refletiu sobre suas dificuldades e seus limites, que não vende seus resultados como produtos industriais à procura de parte de mercado, a psicanálise se questiona sobre o sofrimento dos sujeitos nessa nova ordem simbólica que não é mais o que era, e nunca voltará a ser. Os novos modos de «adição», a dificuldade de separar o sujeito de seu próprio gozo, que o conduz ao ódio do outro e à destruição dele mesmo, a fragilidade do ser e do desejo num mundo em que tudo é feito para acreditar na ideia de que basta procurar o próprio prazer, sem limite e sem nunca encontrar o Outro, para ser feliz, a solidão dos indivíduos submetidos às avaliações de suas performances cotidianas, estas novas coordenadas da condição humana são as que se defrontam os psicanalistas do século XXI. Então, sim, a psicanálise é necessária para todos aqueles que a desejam, pois ela não abandona os seres humanos aos seus impulsos e às suas loucuras. Ainda acredita que a palavra tem um valor e que o ser humano pode conseguir resistir ao turbilhão vertiginoso dos apelos ao gozo, encontrando na linguagem a possibilidade de existir enquanto sujeito.
            Estranha acusação de fundamentalismo da psicanálise por parte daqueles que se perguntam se é preciso «queimar» a psicanálise. Ver nisso uma referência assumida ao regime que queimou os livros de Freud não é inimaginável… Talvez seja melhor ver aí uma referência à Idade Média que queimava suas bruxas? Seria então a presença importante de mulheres no campo da psicanálise que inspirou o Nouvel Observateur nesse título sem sutilezas… o que é que vocês querem queimar: os livros, os analisandos, os analistas? É somente uma imagem, claro, mas talvez diga melhor do que os artigos do dossiê, sobre o sintoma de uma época que não acredita mais na palavra e prefere mandar calar aqueles e aquelas que ainda ousam defendê-la.
 Tradução: Marie-Christine Giusti
Revisão: Maria do Carmo Dias Batista

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