sábado, 12 de maio de 2012

COMO CRIAR AS CRIANÇAS - Éric Laurent


Eric Laurent é um dos continuadores do ensino de Jacques Lacan. Sustenta
que não se pode pensar a clínica fora de sua época. Veio este ano a Buenos
Aires e falou com LNR sobre a família hoje, época de crise no laço social.
Longe de estar fechado em seu consultório, viaja pelo mundo fazendo
conferências que são ouvidas por pessoas de dentro  e de fora do âmbito
“psi”, encarnando o que ele postulou como o analista-cidadão: aquele que
elabora o que diz de maneira tal que possa incidir na civilização.
Você disse que ali onde não há mais família, ela subsiste apesar de tudo. O
que é que subsiste?
A partir do momento que se pode pensar como o fim de uma certa forma
tradicional de família e a partir da igualdade dos direitos, seja entre homens
e mulheres, entre filhos e pais ou entre as gerações, se deslocou a maneira

como se articulava a autoridade. Ademais, com a separação entre ato
sexual e procriação, e com a procriação assistida, vemos uma pluralização
de formas de vínculos que permitem articular pais e filhos fora da forma
tradicional. Uma das discussões entre as civilizações dos países hoje é o
que se pode chamar família em torno de um filho. Isto se pode fazer tanto
com famílias monoparentais, como quando há duas pessoas do mesmo sexo
ou várias pessoas que se ocupam dele. É o que fica do que era a oposição,
em um dado momento, entre um modelo de família tradicional ou nada,
nada que se pudesse chamar família segundo a definição do código civil
napoleônico, a partir do ponto de vista laico: uma certa forma que permitia
transmitir os bens e articular os direitos, mas fora não havia nem bens nem
direitos. Agora há pluralização completa e se segue falando de família
porque é uma instituição que permite bens e direitos e a articulação entre
gerações. Então, é o que fica; nesse sentido, creio que há uma conversação
através de nossa civilização, uma pergunta que dá muitas respostas, que
alguns aceitam, outros recusam e outros querem manter uma forma
definida com um ideal determinado.
Laurent afirma que pensar a figura do pai hoje é um assunto crucial. E que,
inclusive quando o pai falta, o que hoje não falta é um discurso acerca do
que para ela é um pai, ainda se está ausente. Ademais, a mãe por sua vez
teve um pai. Lacan tratou de separar o pai do Nome-do-Pai, quer dizer,
desta função paradoxal proibição-autorização, que pode funcionar ou não
mais além das pessoas presentes.
Atualmente, os novos papéis das mulheres no mercado de trabalho e as
inovações produzidas pela ciência, faz alguns anos, levam a cenários
impensáveis relativos aos modos de reprodução. O que tem para dizer a
psicanálise diante disso?
Em todas estas variações ou criações diversas, discursos distintos vão
entrar em conflito sobre o que são o pai, ou a mãe, em cada caso. Mas o
que vemos é que ninguém quer ter filhos sem pais. É muito evidente, as
brigas jurídicas das comunidades gay e lésbicas para serem reconhecidas
como pais e mães de filhos, são para poder utilizar os nomes da família. A
criança é confrontada com o fato de que fora da família circulam outros
discursos. Como então orientar-se, quando, por exemplo, a criança é
concebida por fertilização assistida com doador anônimo? Os pequenos na
escola lhe dizem: Onde está teu pai? E a criança responde: “Eu não tenho
pai”. Como não vai ter um pai? Isso é impossível... E então, como se vai
responder e sustentar isso? Como se vai inventar uma solução, um discurso
possível? A psicanálise pode, precisamente, nessas circunstâncias ajudar a
criança, a mãe, a poderem orientar-se num espaço no qual seja possível
usar os termos pai-mãe de uma maneira compatível com o discurso
comum.

Você disse que nos momentos de grandes mudanças as  crianças são as
primeiras vítimas, são os primeiros a sofrer o impacto dessas mudanças.
Quais são as questões em jogo para as crianças que estão crescendo?
Múltiplas. As formas de patologia do laço social com as crianças e entre as
crianças, vêm através das queixas dos que estão a cargo delas,
especialmente dos pedagogos, com o papel essencial  que agora
desempenha a escola na civilização. Não faz muito tempo que a escola tem
este papel tão importante para criar as crianças. Antes, a articulação com a
religião, a moral, o Estado, o exército, tinham um  peso, havia uma
variedade de instituições. Cada vez mais se reduz o peso destas para
centrar-se na grande instituição escolar, que recolhe as crianças e trata de
ordená-las a partir do saber. Uma dificuldade para as crianças de hoje (e o
vemos na enorme quantidade de crianças diagnosticadas com déficit de
atenção ou hiperatividade), é a de poderem ficar sentadas cinco horas
numa escola, o que não acontecia em outras civilizações. O curioso é que
parece como uma epidemia o fato de que há mais e mais crianças que não
podem renunciar a este gozo do corpo a corpo, das brigas, a agressão
física, sem falar da violência desproporcional característica das turmas de
adolescentes. Todo este sofrimento funda a idéia de uma patologia da
infância e da adolescência. Diz-se que as crianças  não suportam as
proibições, não toleram as regras.
Poderia esclarecer um pouco mais o que acontece agora nas escolas?
Ao impor a educação universal e dizer que todas as  crianças têm direitos
iguais, ao colocá-las todas no mesmo dispositivo, há patologias que entram
dentro deste dispositivo escolar que não estavam lá antes. Por outro lado,
com o aumento da precariedade do mundo do trabalho, cada vez mais, pela
pressão que existe, as crianças são abandonadas. Antes tinham mães para
se ocuparem com elas. Agora a televisão se ocupa. A televisão é como uma
medicação, é como dar um hipnótico: fazer dormir... É uma medicação que
utilizam, tanto as crianças como os adultos, para ficarem tranqüilos diante
das bobagens da tela. Mas, a televisão comum a toda a família não é a
oração coletiva da tradição, aquela que permitia vincular os membros da
família através dos rituais. Quando o único ritual é a televisão, comer diante
dela, falar sobre ela ou ficar em silêncio diante desse aparato, isto permite
articular pouco esta posição do pai entre proibição e autorização. A escola
é, então, precisamente a que articula esta função: os professores aparecem
como representantes dos ideais e isto aguça a oposição entre crianças e o
dispositivo escolar, transformando as patologias, que não podem se reduzir
estritamente a algo biológico nem a algo cultural,  na imbricação destas
dentro do dispositivo da escola.
Você mencionou Lewis e Tolkien como duas pessoas que a partir da
literatura quiseram propor modelos identificatórios possíveis. Numa época
de queda dos ideais, como orientar as crianças nesse sentido?

A literatura é sempre uma excelente via para orientar-se. Depois da queda
da Primeira Guerra Mundial, da queda dos ideais, os intelectuais estavam
preocupados em como se orientar, e orientar a geração que adviria. Alguns
escritores explicitamente pensaram em elaborar, com sua obra, uma
maneira de proteger as crianças da tentação do niilismo, e orientá-las na
cultura e nas dificuldades da civilização, apresentar figuras nas quais o
desejo pudesse articular-se num relato. Com O Senhor dos Anéis, Tolkien
fez uma tentativa de propor às crianças, aos jovens, uma versão da
religião, um discurso sobre o bem e o mal, uma articulação sobre o gozo, os
corpos, as transformações do corpo, todos esses mistérios do sexo, do mal,
que atravessa uma criança; versões da paternidade.  Tolkien conseguiu
algo: há muitas crianças para as quais o único discurso que conheceram e
que lhes interessa sobre isto é O Senhor dos Anéis nos três episódios. Da
mesma maneira, um escritor católico, como C.S. Lewis fez com as Crônicas
de Nárnia uma versão da mitologia cristã sobre a abordagem dos temas do
bem e do mal, da paternidade, da sexualidade. Graças ao cinema, Tolkien
saiu de seus anos trinta, mas para uma geração foi  Harry Potter que
articula a diferença entre o mundo dos humanos e o  mundo ideal dos
bruxos, povoado de ameaças, onde o bem e o mal se apresentam como
versões do discurso.
O que podem encontrar as crianças na literatura?
Harry Potter foi, para muitas crianças, inclusive as minhas, uma companhia:
ir crescendo da infância à adolescência ao longo dos cinco ou seis tomos da
história. Ademais, apresentou figuras de identificação muito úteis. Uma
criança podia prestar atenção ao que lhe dizia Harry Potter, precisamente,
sobre como se articulam o bem e o mal, sobre como devem se comportar
na vida e como manejar as aparências e os sentimentos contraditórios que
alguém pode conhecer ao mesmo tempo. São ferramentas para salvar as
gerações da tentação do niilismo, do pensar que não há nada que valha a
pena como discurso. Quando nada vale como discurso, há violência. O único
interesse, então, é atacar o outro. A crise dos ideais que se abriu com o fim
da Primeira Guerra não se desvaneceu. A que deveríamos prestar atenção?
Hoje vemos um chamado a uma nova ordem moral, apoiada no retorno da
religião como moral quotidiana. Quando na Europa há violência nos
subúrbios, faz-se um chamado aos imãs muçulmanos para que dirijam um
discurso de paz aos jovens da imigração. Também aos pais, para tratar de
ordenar um pouco o caos engendrado por esses jovens desamparados, que
manifestam condutas estritamente autodestrutivas pela desesperança em
que estão afundados. Na esfera política, através da famosa oposição entre
as questões de temas e valores, vemos que agora o tema é moral. Há uma
tendência a pensar que para voltar a obter uma certa calma na civilização,
necessita-se multiplicar as proibições, que a tolerância zero é muito
importante para restaurar a firmeza da ordem, que as pessoas tenham o
temor da lei para lutar contra seus maus costumes.  Os analistas, diante
desta restauração da lei moral, sabem que toda moral comporta um revés,
que é um empuxo superegóico à transgressão. Precisamente, a idéia dos
analistas em sua experiência clínica é que sabem que quando a lei se

apresenta somente como proibição, inclusive proibição feroz, provoca um
empuxo feroz, seja à autodestruição, seja à destruição do outro que vem
somente proibir. Há que autorizar aos sujeitos a respeitar-se a si mesmos,
não somente a pensar como os que têm que padecer a interdição, senão
que podem reconhecer-se na civilização. Isto implica não abandoná-los,
falar-lhes mais além da proibição, falar a esses jovens que têm estas
dificuldades para que possam suportar uma lei que proíbe, mas que
autoriza também outras coisas. Há que falar-lhes de uma maneira tal que
não sejam somente sujeitos que têm que entrar nestes discursos de
maneira autoritária, porque se fizer isso, vai provocar uma reação forte com
sintomas sociais que vão manifestar a presença da morte.

Como criar as crianças nesta época?
Temos que criar as crianças de uma maneira tal que logrem apreciar-se a si
mesmas, que tenham um lugar, e que não seja um lugar de desperdício. Na
economia global atual, o único trabalho que pode inscrever-se é um de alta
qualificação, ao qual nem sempre vão ter acesso. Não podemos pensar que
vamos sair na frente somente com a idéia de que se alguém trabalha bem e
tem um diploma, vai encontrar um trabalho. Há crianças que não vão entrar
e, apesar disso, têm que ter um lugar na nossa civilização. Não podemos
abandoná-las. E este é o desafio mais importante que temos, o dever que
nós temos diante delas. Conceber um discurso que possa alojá-los dentro
da economia global.
Por Verônica Rubens.
Tradução de Maria Luiza Caldas.

NOTA
1. In: LA NACIÓN, Edición Impresa 
http://www.lanacion.com.ar/edicionImpresa/index.asp? Revista 
http://www.lanacion.com.ar/edicionimpresa/suplementos/Revista/index.asp?
Domingo, 3 de junho de 2007. 
http://www.lanacion.com.ar/edicionimpresa/suplementos/revista/nota.aspnota_id=
912774  
Julho/2007
http://www.isepol.com/asephallus/numero_04/pdf/atualidades_01.pdf






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