quarta-feira, 9 de maio de 2012

Belas Horas do Duque de Berry


Pascal Torres, curador do Museu do Louvre, membro da Real Academia de Bellas Artes de San Luis (Saragossa, Espanha) aceitou de bom grado responder às quatro perguntas que lhe fez Nathalie Georges-Lambrichs para Lacan Cotidiano.
 entrevista por Nathalie Georges-Lambrichs
LC – O senhor contribuiu para a edição das Belas Horas do Duque de Berry, atualmente expostas no Louvre (5 de abril – 25 de junho de 2012). Precedidas de textos especialmente eruditos, essas iluminuras luxuosas quase chegariam a suspender o pensamento e o julgamento, pela força da beleza. Como nasceu esse projeto?

Pascal Torres - A senhora evoca dois projetos, duas realizações. A primeira é editorial, a outra é uma exposição. Uma é ligada à outra; a primeira é perene, a segunda, efêmera. Voltemos há alguns anos atrás: os Cloisters (departamento medieval do Metropolitan Museum de Nova York) iniciaram a restauração de um dos mais preciosos manuscritos franceses do comecinho do século XV, As Belas Horas do Duque de Berry. A encadernação estava em péssimo estado e nossos colegas de Nova York tomaram a sábia decisão de desfazerem o conjunto do manuscrito para restaurar cada um dos «bifólios» que o compõem. O livro deveria ser reconstituído após um demorado processo de restauração. O Metropolitan Museum apresentou o conjunto de folhetos restaurados em Nova York, exposição que foi parcialmente retomada pelo John Getty Museum de Los Angeles.

A ideia de apresentar a obra-prima dos irmãos Limbourg no Louvre nasceu na urgência do programa de reconstituição da obra. Os nossos colegas do Metropolitan logo aceitaram apresentar em Paris, cidade de nascimento das Belas Horas e, além do mais, no Louvre – onde o rei Charles V havia instalado sua «Livraria Real» - o conjunto dos folhetos que nós solicitaríamos. Escolha difícil, no entanto, pois não era em nada imaginável apresentar todas as miniaturas, todas as páginas iluminadas da obra. Quero dizer: por razões de fragilidade, o transporte de Nova York até Paris das obras em sua moldura, deixando aparecer tanto a frente quanto o verso dos bifólios era impossível. Foi aí que defini a dupla necessidade: publicar a integralidade das 172 miniaturas que compõem as Belas Horas do Duque de Berry, e apresentar, da maneira mais completa possível, o conjunto dos sete ciclos historiados, invenções revolucionárias da estética dos Limbourg, que compõem o manuscrito, nas salas da exposição no Louvre. Mas apresentar um manuscrito desmontado apresenta relativa complexidade: a ordem narrativa (da página 1 à página n por exemplo) não é facilmente recomposta, já que um bifólio destacado de um caderno sempre apresentará as duas frentes e os dois versos de um livro, sem seguir em nada a ordem numérica crescente das páginas (fora para os raros bifólios centrais dos respectivos cadernos). Em suma, a natural contradição (a leitura improvável) resultante da apresentação de uma só face de cada bifólio deveria ser compensada pela publicação completa dos ciclos historiados. Estamos aqui muito próximos dos desvarios de um Borges, das divagações numéricas …

É estranho, mas a própria característica do manuscrito parecia interditar sua exposição. Não impede que as iluminuras dos irmãos Limbourg sejam consideradas como a obra-prima da pintura francesa do início do século XV. As imagens, consideradas como «pinturas de cavalete» (afinal é o que se produz a maior parte do tempo em nossas pinacotecas!) iriam de qualquer forma liberar migalhas de seu sentido, de sua própria epifania da beleza. Precisava, pois, escapar de um sentido errôneo, produzir um sentido que se aproximaria o mais possível da realidade das obras. Ora, falamos aqui do Ano 1400. Claro que uma introdução se tornou necessária, pois se aceito considerar que a obra fala por si só, no entanto, não é fácil entrar logo à primeira vista na civilização parisiense do reino de Charles VI sem se dedicar a um esforço – um combate – particular.

LC – Quanto ao conceito de «belas horas», despertaria mais a nostalgia… Porém, suponho que a sua intenção seja outra que simplesmente deslumbrar o público… Quais são as suas intenções secretas, além da «pura fruição» que olhá-las produz, sem dúvida nenhuma?

Pascal Torres – A intenção é mostrar, dando a entender o sentido da criação dos irmãos Limbourg, uma obra desconhecida, pois dificilmente acessível, mas que em si poderia se comparar a duas obras-primas justapostas, anteriores cem anos às Belas Horas: é como se você expusesse num mesmo espaço as capelas inferiores e superiores de Assis e a capela dos Scrovegni em Pádua. O grau de invenção, de diluição das obrigações iconográficas, de maleabilidade na apresentação do real, de abstração das estruturas «gramaticais» da linguagem pictórica é absolutamente comparável, a meu ver, à eclosão da pintura moderna em que Cimabue, em primeiro lugar, e depois dele seu seguidor Giotto definiram o essencial da gramática no espaço de alguns decênios. Pois é, existe verdadeiramente aí um fascínio que ultrapassa qualquer medida quando se olha os folhetos dos Limbourg. Mas este fascínio, por ser altamente contagioso, não é a justificativa primordial da exposição. Mas já que a senhora fez um jogo de palavras muito natural em torno da noção de Belas Horas, vou usá-lo para tentar me aproximar da intenção da exposição. Logo cedo esse título foi dado ao manuscrito – o que é rico de ensinamentos. No entanto, é preciso se colocar no contexto dos esplendores da corte dos Valois para entender plenamente seu sentido. Jean de França, Duque de Berry (1340-1416), patrocinador do manuscrito, era o filho do Rei Jean II, O Bom (1319-1364). Era irmão do Rei Charles V, O Sábio (1338-1380), irmão de Louis I, Duque de Anjou (1339-1384), e irmão do Duque de Bourgogne, Philippe, O Temeroso (1342-1404). Estamos aí falando dos principais mecenas do gótico parisiense… E é nessa corte tão refinada que os livros de Horas, livros que pertenciam à devoção privada, vão conhecer um impulso inédito. O acento posto sobre a natureza individual da piedade conduziu à moda do livro de devoção privada e, em torno do ano 1400, existem mais manuscritos de luxo com iluminuras junto aos meios laicos que nos meios eclesiásticos. A primeira menção histórica das Belas Horas se acha no quarto inventário dos bens de Jean da França, redigido por Robinet de Estampes em torno de 1408, ou pelo menos antes do 9 de julho de 1409. A menção do inventário aparece sob o n° 960: «item, umas belas Horas, muito bem e ricamente historiadas; e no começo está o Calendário, escrito e historiado com riqueza; e depois é historiada a Vida e Paixão de Santa Catarina; e em seguida são escritos os quatro evangelhos e duas orações de Nossa Dama; depois se iniciam as Horas de Nossa Dama, seguidas de numerosas outras horas e orações; no começo do segundo folheto das ditas horas de Nossa Dama está escrito: audieritis; capas de veludo vermelho, com duas fechaduras de ouro, essas são as armas de Monsenhor de grande altivez; e por cima das ditas horas há uma camisa de veludo vermelho, forrada de cetim vermelho; essas horas Monsenhor mandou fazer para seus operários». Uma tão longa descrição em um inventário testemunha a admiração, a magia, suscitada por tal manuscrito, iniciado em 1405 e acabado em 1409. De fato, trata-se do único manuscrito inteiramente autêntico realizado pelos irmãos Limbourg. É absolutamente excepcional. Além disso, os anos de que falamos (o que atestam antes de mais nada as Belas Horas) são os anos de elaboração do estilo inovador dos Limbourg. Lendo as Belas Horas,assistimos ao nascimento de sua arte, desde ultrapassar a Bíblia moralizada de Filipe, O Temeroso, até a eclosão sem dúvida genial das Muito Ricas Horas de Jean da França. Pela força das coisas, segui-los educa o olhar, abre um percurso pedagógico até a profunda metamorfose que conhece a representação da pintura no decorrer do primeiro decênio do século XV. É toda uma visão do mundo que aparece. Esse manuscrito expõe a epifania de nossa civilização, a da imagem e do movimento. Talvez seja essa a intenção mais secreta: revelar ao olhar do público o que nos legou o gótico parisiense do começo do século XV. É também por isso que a medalha de Heráclito, excepcionalmente emprestada pela Biblioteca Nacional de França, acha aqui seu lugar. Ela representa o Imperador Manoel II Paleólogo. É um retrato, é também uma presença da perfeição da arte dos joalheiros parisienses do fim do século XIV: Manoel II paleólogo se encontrava em Paris de 1400 a 1402 para levantar subsídios destinados a empreender uma cruzada contra O Turco. Reparem: tem tudo aí, a Paris das Finanças, a Paris da arte cortês, centro e umbigo dos reinos cristãos do Ocidente, no qual se expressou a arte sutil e fundadora dos Limbourg…

LC - De qualquer modo, não se pode confundir as Belas Horas com as Muito Ricas Horas mantidas em Chantilly, e devidas também ao gênio dos irmãos Herman, Paul e Jean Limbourg.

Pascal Torres - De fato. As Muito Ricas Horas do Duque de Berry, adquiridas pelo Duque de Aumale em 1856 e mantidas no Museu Condé de Chantilly, ilustraram todos os nossos livros de história. (É até engraçado, aliás, lembrar que um dos usos mais frequentes desses livros de Horas consistia na aprendizagem da leitura pelos filhos dos aristocratas). Mas, as Muito Ricas Horas, provavelmente iniciadas em torno de 1411 ou 1412, embora sejam o ápice da arte dos Limbourg, não constituem um manuscrito inteiramente autêntico. O manuscrito foi acabado por Jean Colombe, depois do falecimento simultâneo dos Limbourg em 1416, muito provavelmente por causa da peste. Isto não impede que o grau de criatividade artística atingido pelos irmãos Limbourg, com o manuscrito das Muito Ricas Horas, não conheça equivalente. Se o Duque de Aumale, grande colecionador e rival do Barão Edmond de Rothschild no século XIX, adquiriu as Muito Ricas Horas, Edmond de Rothschild, por sua vez, adquiriu as Belas Horas entre 1880 e 1884. O Manuscrito fez parte das obras-primas que não foram doadas por seus filhos ao Museu do Louvre, quando da extraordinária doação (constituída por mais de 100 000 obras gráficas) da coleção do Barão Edmond de Rothschild, em 28 de dezembro de 1935. As Belas Horas permaneceram em propriedade do Barão Maurice de Rothschild, filho de Edmond, que deixou Paris para viver em Montreal em julho de 1940, nos primeiros dias do Regime de Vichy – o qual autorizou o roubo das Belas Horas como corolário de sua política de espoliação dos bens judeus. Foi na Alemanha que os aliados reencontraram as Belas Horas e outros tão preciosos manuscritos, pertencentes aos Rothschild, que, logo após a Liberação, haviam deixado definitivamente a França para se instalar em Genebra, no castelo de Pregny. Maurice de Rothschild vendeu em 1954 ao Metropolitan o manuscrito, ao mesmo tempo que as Pequenas Horas de Jeanne d’Evreux, e ofereceu em 1956 à Biblioteca Nacional da França o precioso manuscrito das Muito Belas Horas de Notre Dame, obra parcial dos Limbourg.

LC - O senhor aceitaria nos guiar e nos acompanhar nessa visita e assim nos despertar à significação dessas obras maravilhosas…

Pascal Torres - Proponho ao visitante da exposição percorrê-la tendo em mente que os fragmentos aqui expostos (falo tanto dos livros de Horas quanto dos marfins, do Paramento de Narbona, das esculturas de Mehun-su-Yèvre ou do túmulo de Filipe, o Temeroso…) contam entre os mais extraordinários testemunhos da arte francesa do fim do século XIV e do início do século XV. Recomendo ao público não esquecer de que se trata tanto de visitar uma exposição quanto de ler um livro. E a exposição das Belas Horas, contemporânea da exposição que dedico a Jean-Philippe Toussaint sob o título de Livro/Louvre, se insere na ampla homenagem ao Livro que vem promovendo atualmente a Coleção Edmond de Rothschild, por meio de peças-chaves pertencendo ou tendo pertencido a seu fundo. E é certamente porque eu tenho um profundo amor e uma admiração incomensurável por Jorge Luis Borges (que foi, não o esqueçamos, o curador da Biblioteca de Buenos Aires), que proponho percorrer as Belas Horas, sob um modo fragmentário, o que é também uma forma de homenagem a Borges: tal o Livro de Areia, com seus vácuos, o manuscrito hoje desmontado das Belas Horas abre para um mundo, escondido ao olhar… O avesso da página? Os bifólios não-expostos? Tudo faz sentido. Se a exposição do Metropolitan banhava o olhar na profusão ordenada dos pergaminhos, na globalidade da mostração, a exposição do Louvre – e é a isso que pode ser humildemente reduzida a minha intervenção – põe em evidência a falta/falha como um fato de civilização – a nossa – e procura desvelar no excesso que habita os nossos museus, uma forma da melancolia do fragmento.

**NR: Horas ou Livro de Horas são livros de orações, pensamentos, preces e correspondência íntima de cunho religioso, recheados de ilustrações e gravuras, comuns entre os nobres na Idade Média. Um precursor dos “missais” da Igreja Católica.
n/ 200

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