O Riso de Helena
Gisèle Ringuelet
Sabemos que Freud era leitor principalmente de Goethe, mas também de Nietzsche. Partindo da ideia de que ambos os escritores traziam a Freud um saber que se articulava à sua própria busca e interrogações, interessa-me considerar um sintagma que Freud não desconhecia e que ambos os autores utilizaram: Helena o modelo de todas as mulheres. O propósito é tentar cernir o uso que cada um dos três escritores formulou sobre o mesmo.
No livro de Goethe, o personagem principal descrê de todo o saber constituído. E é, com uma posição pessimista frente ao mundo, que vê em um espelho, como envolta em neblina, a mais formosa miragem de mulher!
Mas é Mefistófeles, o diabo, quem – depois do pacto que faz com Fausto – diz: com essa bebida no corpo, presto, verás uma Helena em cada mulher.
Na primeira parte do livro, o amor de Fausto fixa-se na personagem de Margarida, e a tragédia se desenrola produzindo em seu decorrer diversos valores que a nomeiam (de bela mulher a prostituta). Pouco instruída e criatura muito inocente precipita o desejo de Fausto que, dirigindo-se a Mefistófeles de modo imperativo, diz: ... se esta doce jovem não repousar hoje em meus braços, quando chegar a meia-noite, tudo fica desfeito entre nós.
Podemos afirmar, como o faz Germán García (sobre a distinção amor/sexualidade) , que um homem ou uma mulher que ama relaciona-se com o amor, e o sexo de uma pessoa a põe em relação com o sexual. Então, Fausto se dirige ao amor, mas o que há de Helena em Margarida?
Será Lacan a estabelecer uma lógica da vida amorosa ao ler Freud e desmistificar a pergunta formulada por este sobre o querer da mulher. O objeto a converte-se, para Lacan, na causa do desejo e do amor, sendo este objeto o que o substitui o -φ que Margarida encarna, o véu que mascara a própria falta.
Nietzsche em seu livro O Nascimento da Tragédia, coloca um novo pensamento trágico que comporta a existência de duas tendências opostas: o apolíneo e o dionisíaco. Nesta obra, embora o autor se remeta à cultura grega, articula em sua escritura uma visão particular de mundo, que se opõe a um pensamento religioso (moral que relega a mentira) e cientificista (medo ao pessimismo).
Nietzsche escreve, referindo-se aos gregos, que estes se chocavam a cada vez que olhavam, com o riso de Helena, imagem etérea e sensual de uma existência ideal. O riso de Helena é visto por homens que sabem gozar da vida, espetáculo que deixa sem palavras a sua testemunha-espectador. Para Nietzsche o riso não tenta contra-argumentar, mas propõe-se a parodiar e dessacralizar.
Lacan no Seminário V As Formações do Inconsciente [2], ao falar do riso, diz que “se trata sempre de uma liberação da imagem e que a gargalhada concerne a tudo o que é imitação, dublagem, sósia, máscara, e se o observamos atentamente, não se trata só da máscara, mas do desmascaramento...”.
Os homens que Nietzsche menciona aparecem como homens privilegiados que, diferente da maioria dos ocidentais, desacreditam de raciocínios religiosos, de princípios universais e sabem algo dos semblantes que governam a sociedade. Mas é justamente o riso de Helena, modelo de mulher o que desmascara, o que libera de uma imagem na qual muitas pessoas ficam aprisionadas.
Se nos remetermos à mítica Helena de Troia, esta mulher que, pela sedução e beleza, causa uma guerra, encontramo-nos em um contexto onde – diferente das atuais guerras anônimas – quem luta conhece seu adversário, conhece seus nomes. Na antiguidade, como o indica Jacques-Alain Miller [3], a lógica do “para todos” não estava constituída, porque havia senhores e escravos e a moralidade era uma moralidade dirigida pelos senhores e para eles próprios, e não para os escravos. Mas Helena atravessa os tempos e inscreve-se na sociedade dos fins do século XVIII (Goethe) e XIX (Nietzsche), para ser mencionada logo depois por Freud no começo do século XX, época na qual a ciência moderna impõe o “para todos”.
A citação de Freud, “ver Helena em cada mulher”, intervém, como indica Bárbara Cassin [4] em uma carta de Freud a Jung, datada de abril de 1909. Helena é o nome que indica para Freud, o trabalho de interpretação de seu próprio inconsciente. O inquietante (real) para o mestre vienense causa a produção de um delírio singular que leva o nome de mulher. Método que se opõe à hipótese de causalidade eficiente que Jung estabelece entre ocultismo e Psicanálise.
Então, por que esses três autores que atravessam conhecimentos instituídos, em sua busca por desvelar zonas desconhecidas, nomeiam como Helena, o nome de cada mulher?
Goethe
Na primeira parte do livro, Goethe fala do amor de Fausto por Margarida, amor que é substituído na segunda parte, por Helena. Ambas funcionam como semblantes que velam um nada. Mas é na segunda parte, que se coloca em evidência que o que existe são os objetos agalmáticos e o discurso, o dizer (até mesmo sem falar). Uma presença na ausência que se opõe a uma existência tangível, a uma essência.
Averiguamos, como nos indica Letícia Garcia [5], que no amor está em jogo o não-saber: o amante não sabe o que lhe falta e o amado não sabe o que tem. O amante é o que, carecendo de algo, pode desejar um objeto precioso, o agalma.
O desconhecimento de Fausto opõe-se ao saber de Mefistófeles sobre as palavras . O diabo, denominado pelo próprio Fausto como um sofista, provoca e ironiza o personagem enamorado, que busca numa mulher algo inapreensível.
O paradoxo de Zenon de Eleia, utilizado por Lacan no Seminário 20, demonstra que Aquiles pode ultrapassar a tartaruga, mas não alcançá-la, ela é não-toda sua.
Quer dizer, não alcançamos o Outro – não há Outro gozo a não ser no infinito [7], de maneira que o espaço entre os sexos requer certas invenções do amor, para fazer possível a suplementaridade entre os sexos.
Nietzsche
Seguindo uma lógica similar, Nietzsche fala do riso de Helena como um signo que desprestigia o discurso totalizante, mas que, no entanto, é efeito da articulação significante e como tal provoca o desejo e um saber sobre o gozo. E ao incluir o apolíneo e o dionisíaco como “tendência para...” a possibilidade de criar (algo novo) introduz os paradoxos como constitutivos de todo ser que fala. Falando em outros termos, este autor sabe algo sobre o paradoxo do mentiroso que Lacan utiliza no Seminário 23 O Sinthoma, quando se pergunta: O que pode haver de mais verdadeiro do que a enunciação ‘eu minto’? E continuando, interroga-se: Quem não sabe que, ao dizer ‘eu não minto’ não se está em absoluto a salvo de sustentar algo falso? Eu é para Lacan, um significante no qual se evidencia o semblante constitutivo de todo discurso.
Freud
Coloca, por seu lado, um inconsciente até então desconhecido, um inconsciente variável, que é inseparável da noção de transferência (sujeito suposto saber). Já não se trata de um princípio religioso, nem de uma chave universal. Senão que, como coloca Lacan, é um saber ligado ao objeto causa, um saber ligado ao desejo, ao objeto perdido de Freud. O delírio de interpretação, tal como o denomina Freud, implica a novidade pela qual um significante articulado com outros (s) faz surgir uma significação até o momento não sabida. Para Freud, a ideia de modelo está inscrita em um modo de funcionamento (pulsional); mas é só no momento em que (como Freud mesmo se localizou) o sujeito se pergunta sobre a causa de si, que aparece o desejo (sua divisão). Surge, como indica Miller [8], um semblante, um semblante operativo, cujo saber se marca no ato mesmo, mas não se consegue capturar, apreender, como acontece com um conhecimento universitário. Ele escapa como uma mulher, à qual é impossível alcançar em sua totalidade. Podemos concluir, que tanto para Goethe quanto para Nietzsche, uma bebida mágica funciona como pharmacon – remédio/veneno [9], e por consequência, modifica aos que falam e aos que calam. Quer dizer, ambos incursionam sobre como opera a linguagem, como a linguagem pode transformar ao outro e a si próprio [10] e não apenas comunicar ou informar, demonstrando, como posteriormente o explicita Lacan, que o ser é efeito do dizer. Helena opera como metáfora de todo objeto cobiçado que precipita para a guerra e para o amor. Mas também – como os três autores o indicam – Helena nomeia o objeto de desejo, o gozo falido, e é por isso mesmo que causa àqueles que a percebem, que a escutam, ainda em sua ausência.
*Publicado com a amável autorização da autora.
Tradução: Maria Bernadette Soares de Sant´AnaPitteri
Revisão: Marcela Antelo.
*Investigação iniciada no módulo do Centro Descartes: “Sofistiquería, entre sofisma e sofisticación”,cuja responsável é Graciela Musachi.
Bibliografia: Colofón Nº 30, Boletín de la Federación Internacional de Bibliotecas de la Orientación lacaniana, Novembro 2010, Edição España-Argentina (p. 10-12)
Notas
[1]García, Germán. Em torno de las Identificaciones, chave para la clínica. Otium Editiones 2.009. Tucumán, Argentina pag.21.
[2] Lacan¸ Jacques Seminário V – Las formaciones del Inconciente (1967-1958) Paidós. Bs As. Argentina Págs. 256-257.
[3] Miller, Jacques-Alain. “Uma charla sobre el amor” (1988) in Conferencias portenhas. Bs. As. Argentina Págs. 256-257.
[4] Cassin, Bárbara “L’inconscient, qui voit Hélène em toute femme” em Voir Hélène em toute femme. Collection: Les empecheurs de penser em sond. Paris.
[5] García, Letícia. “Causa y Agalma” em las revista Las paradojas del objeto em psiconálisis. Edulp. Año 2007. La Plata-Argentina.
[6] Musachi, Graciela “Una mujeres um aglomerado de albuminóides”, em revista de psicoanálisis, Dispar 2010. Editorial Três Haches, Bs.As, Argentina.
[7] Acuña, Enrique. “H, soledad Del sintoma”. Resonancia y silencio. Edulp. Año 2009. La Plata-Argentina.
[8] Miller, “De mujeres y semblante”. Cuademos Del pasador. Año 1993. BsAs. Argentina, p.16.
[9] Testa, Adriana. “Como fue posible que la adiccion diera com la droga?“ in revista Conceptual N7. Publicación de la APLP. Año 2006. La Plata-Argentina.
[10] Nota 10: Cassin, Bárbara “Lacan y lasofistiea: Aun, aun Helena” , El efecto sofistico. Fondo de Cultura Econômica. Año 2008. Bs.As. Argentina.
[1]García, Germán. Em torno de las Identificaciones, chave para la clínica. Otium Editiones 2.009. Tucumán, Argentina pag.21.
[2] Lacan¸ Jacques Seminário V – Las formaciones del Inconciente (1967-1958) Paidós. Bs As. Argentina Págs. 256-257.
[3] Miller, Jacques-Alain. “Uma charla sobre el amor” (1988) in Conferencias portenhas. Bs. As. Argentina Págs. 256-257.
[4] Cassin, Bárbara “L’inconscient, qui voit Hélène em toute femme” em Voir Hélène em toute femme. Collection: Les empecheurs de penser em sond. Paris.
[5] García, Letícia. “Causa y Agalma” em las revista Las paradojas del objeto em psiconálisis. Edulp. Año 2007. La Plata-Argentina.
[6] Musachi, Graciela “Una mujeres um aglomerado de albuminóides”, em revista de psicoanálisis, Dispar 2010. Editorial Três Haches, Bs.As, Argentina.
[7] Acuña, Enrique. “H, soledad Del sintoma”. Resonancia y silencio. Edulp. Año 2009. La Plata-Argentina.
[8] Miller, “De mujeres y semblante”. Cuademos Del pasador. Año 1993. BsAs. Argentina, p.16.
[9] Testa, Adriana. “Como fue posible que la adiccion diera com la droga?“ in revista Conceptual N7. Publicación de la APLP. Año 2006. La Plata-Argentina.
[10] Nota 10: Cassin, Bárbara “Lacan y lasofistiea: Aun, aun Helena” , El efecto sofistico. Fondo de Cultura Econômica. Año 2008. Bs.As. Argentina.
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