quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Spider – Desafie Sua Mente

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David Cronenberg realiza um dos mais impressionantes mergulhos na mente de um personagem

Por: Rodrigo Carreiro




NOTA DO EDITOR:

A belíssima seqüência de abertura de “Spider” (Inglaterra/Canadá, 2002) dá o tom exato do longa-metragem de David Cronenberg. São imagens estáticas de detalhes das paredes mofadas de uma casa humilde na periferia industrial de Londres. Elas parecem lindas pinturas abstratas, em tons pastéis, e surgem acompanhadas de uma melancólica canção levada ao piano. As imagens conseguem encontrar padrões plasticamente interessantes em paredes descascadas. Se bem observadas, essas imagens encontram um padrão recorrente – minúsculos pontos que parecem olhos. Isso revela muito sobre a ambiciosa proposta do filme: mostrar como funciona uma mente esquizofrênica.

Como se sabe, os esquizofrênicos sofrem de mania de perseguição, o que explica perfeitamente os olhos fictícios. “Spider” pretende, portanto, alcançar uma tarefa em que muita gente boa já fracassou. Não é o caso aqui. O filme tem sido aclamado pela crítica internacional como uma pequena obra-prima do cinema contemporâneo, e é verdade. Está entre os melhores filmes de Cronenberg, e isto não é pouca coisa, já que estamos falando de um dos cineasta mais importantes da cinematografia atual, um dos raros que merecem o rótulo de “autor”.

O diretor canadense é um desses raros artistas arrojados que tentam expandir os limites da arte para além daquilo que se pretende possível. A obra de Cronenberg tem uma coesão temática admirável. O cineasta se dedica, há trinta anos, a documentar a fusão entre corpo e tecnologia, além de buscar traduzir em imagens a confusão entre realidade e ficção que, segundo filósofos pós-modernos, é marca registrada da época em que vivemos. Esse lugar entre fronteiras torna-se, mais uma vez, objeto de investigação para Cronenberg.

Em “Spider”, contudo, o diretor persegue um estilo delicado e low profile, completamente diferente daquele que o consagrou. A excentricidade e a valorização do grotesco, perseguidas em filmes como “Crash” e “eXistenZ”, foram abandonados em prol de um resultado mais discreto e silencioso. Sem medo de errar, é possível afirmar que o cinema jamais havia conseguido, até este filme, entrar na mente de um personagem de forma tão impressionante. Todas as imagens que vemos são filtradas através da mente de Dennis “Spider” Cleg, um homem doente que acaba de ser libertado do hospício, mas nem por isso perto da cura. Ele não se comunica e vive num mundo só dele.

Dennis (Ralph Fiennes), claro, é esquizofrênico, embora o filme jamais diga isso claramente. Ao sair do hospício, ele se hospeda numa pensão especial para sujeitos como ele, localizada num bairro da periferia industrial de Londres. É o mesmo local onde ele passou a infância, e Dennis se aproveita desse fato para visitar os lugares que marcaram sua vida e tentar relembrar os acontecimentos que lhe provocaram a loucura. Por isso, anda com um caderninho de anotações, rabiscando e murmurando palavras incompreensíveis. Dennis vive num mundo particular, e Cronenberg compartilha este mundo com a platéia de forma surpreendentemente lúcida.

“Spider” é uma dessas felizes conjunções de talentos raras no cinema. A composição do personagem principal é um trabalho espetacular e meticuloso. Ralph Fiennes passa a maior parte do tempo murmurando para dentro e espreitando, como um fantasma, a difícil relação que manteve com o pai, um encanador (Gabriel Byrne), e a mãe, uma devota dona-de-casa (Miranda Richardson). A atriz, por sinal, também incorpora – de forma sensacional – dois outros papéis, de uma prostituta local e da dona da pensão onde Spider está hospedado no presente. Ela está tão bem que o espectador demora a reconhecer a mesma atriz nos três personagens.

A presença cênica segura de Richardson busca colocar o espectador na mesma posição de Dennis Cleg. Na medida em que vai investigando os fatos da infância, o sujeito vê os limites de realidade, ficção e memória se cruzarem. A narrativa de “Spider” vai mergulhando o personagem – e com ele a platéia – numa complicada rede de recordações distorcidas pela mente perturbada do protagonista, até um limite em que nem Cleg e nem o espectador consegue mais distinguir o real e a ficção, o passado e o presente, as memórias verdadeiras e as memórias distorcidas pelo esquizofrênico Spider.

Se os atores têm grande mérito no notável trabalho de embaralhar os limites daquilo que é real e imaginário, David Cronenberg tem ainda mais. Ele já havia trabalhado o tema de maneira engenhosa no longa-metragem anterior, “eXistenZ”. Para realizar “Spider”, contudo, o diretor preferiu uma abordagem diferente, em que jogou fora todo o ranço teórico pós-moderno e a obsessão com a interferência da tecnologia no corpo humano. Cronenberg reduziu a trama ao mínimo possível, poupando diálogos (Ralph Fiennes não tem uma cena sequer de diálogo!) e abrindo espaço para o espectador refletir sobre a natureza das imagens que consome.

Aqui, o cineasta foge do naturalismo e usa a cenografia como ferramenta para mostrar o mundo solitário e confuso de Spider (repare como, à exceção da cena de abertura na estação de trem, o personagem está sempre caminhando em ruas vazias, sem nunca cruzar com ninguém, numa demonstração visual impressionante da solidão daquela mente). O mundo urbano, sujo, de ruas vazias, fábricas desertas e paredes com pinturas caindo aos pedaços, funciona como metáfora da condição interior de Spider.

A citada abertura é um bom exemplo da técnica refinada de Cronenberg. A cena mostra os ocupantes de um trem saindo da locomotiva, que acaba de chegar à estação. Há três categorias de transeuntes. Os primeiros andam rápido, quase correndo. Estão concentrados, tensos, indo ao trabalho. Não olham em torno, estão com a cabeça longe. Em seguida, há os turistas, que caminham sem muita pressa e com uma invariável mistura de sorrisos e olhares curiosos. Dennis Cleg é, sozinho, a terceira categoria – e também o último homem a descer do trem. Antes que qualquer palavra seja pronunciada, a platéia já sabe que está diante de um homem diferente, que não pertence ao mundo.

A rigor, quando preferiu enfatizar o processo mental bastante singular de Dennis Cleg, Cronenberg conseguiu criar uma galeria de personagens inesquecíveis, uma trama complexa que literalmente desafia a platéia a separar a realidade da ilusão, e um filme plasticamente belo, que consegue extrair poesia da degradação urbana (e humana) em um momento histórico – século XXI – em que isso já não parecia mais possível.

O DVD da Versátil, lançado em 2006, traz o filme com boa qualidade de imagem (widescreen anamórfica) e som (Dolby Digital 5.1), mais um ótimo documentário (30 minutos) em três partes. A edição anterior, da mesma distribuidora, não tinha extras e trazia cortes laterais na imagem (fullscreen).

- Spider – Desafie Sua Mente (Spider, Inglaterra/Canadá/França, 2002)
Direção: David Cronenberg
Elenco: Ralph Fiennes, Miranda Richardson, Gabriel Byrne, Lynn Redgrave
Duração: 98 minutos

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