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Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais -
Almanaque On-line entrevista - Cristina Drummond
1) Almanaque On-line: Você tem-se dedicado bastante ao tema que perpassa as
discussões no âmbito da Associação Mundial de Psicanálise e que vem representado
no título do próximo congresso da AMP, a acontecer em 2012: A ordem simbólica
no século XXI. Ela não é mais a mesma. Consequências para o tratamento. Quais
os efeitos da precariedade do simbólico vistos na clínica e de que forma o discurso
analítico pode operar?
Cristina Drummond: Penso que essa precariedade se manifesta na vacilação dos
semblantes, no declínio da autoridade paterna e na falta de sustentação dos ideais.
Ela se reflete na maneira que os sujeitos têm encontrado para se inserir na vida.
Vemos que isso se apresenta na precariedade dos sujeitos contemporâneos, em
sua maneira frágil de se inserir no mundo, retratada nos desempregados, nas
crianças que recusam a escola, nas crianças agitadas, nos sujeitos errantes, nos
refugiados cujo número aumenta a cada dia, na violência de todas as espécies, nas
novas constituições familiares, nas formas de intervenção sobre os corpos, nas
maneiras de agrupamentos, no culto do imaginário. A intensa insatisfação, ou,
ainda, a depressão, que cresce em nosso mundo, são índices da busca desenfreada
pelo gozo, um efeito da presença maciça do discurso da ciência, que quer propor
uma maneira de vida para todos.
Essas mudanças se refletem nos diferentes discursos, sobretudo nas novas
ficções jurídicas que buscam legislar e encontrar solução para essas mudanças que
não se inserem nos antigos códigos legais.
Quanto à clínica psicanalítica, as grandes categorias nosográficas ao estilo
de Kraepelin, que herdamos da clínica psiquiátrica, estão postas em discussão, já
que os sintomas neuróticos e os fenômenos psicóticos não se apresentam da
mesma maneira que se apresentavam no século XIX e início do século XX.
Por outro lado, a orientação pelo discurso analítico não aponta para a
construção de uma nova nosologia, não buscamos uma nova classificação que
estivesse de acordo com os conceitos psicanalíticos. Isso não seria mais do que
reduzir a psicanálise a uma psicopatologia.
Aquilo a que o discurso psicanalítico se propõe, e essa é a sua radical
diferença em relação aos outros discursos, é preservar o lugar do sujeito e, no meio
de todas essas mudanças, verificar a resposta sintomática particular de um por um
daqueles que nos procuram.
2) Almanaque On-line: O mundo contemporâneo se constitui pela fragilidade das
ficções, pela falta de ideais e mesmo por uma dificuldade de localização dos
sintomas. Muitos dos que chegam aos consultórios procurando tratamento não
sabem localizar de que sofrem, assim como também encontramos cada vez mais os
chamados “sem lugar”: jovens que passam a noite correndo pela cidade, de bar em
bar, sem ponto de parada; andarilhos ou errantes. Podemos dizer que o mundo se
apresenta de uma forma fluida e incerta, gerada pelo que temos chamado das
incertezas do simbólico. Como, então, você explicaria a proposta de Laurent de um
“elogio ao déficit do simbólico”?
Cristina Drummond: Eu compreendi que Laurent não faz exatamente um elogio
ao déficit do simbólico, mas sim à debilidade mental, que é uma das consequências
desse déficit e que ele toma, juntamente com Miller, como um traço do homem
contemporâneo. As constantes mudanças tecnológicas, o bombardeamento de
informações que sofremos sem tempo de digerir são aspectos que nos mostram
que o próprio discurso do Outro aparece atualmente de maneira flutuante,
pulverizada e fragmentada. Isso faz com que tenhamos uma enorme dificuldade
para viver e ler todos esses acontecimentos. Laurent vê a debilidade mental como
favorável à psicanálise porque ela nos empurra para encontrar um tratamento do
real, já que nossa mente não nos coloca em relação com ele. Se o simbólico não
recobre todo o gozo, se sempre há um resto ao qual não podemos dar sentido,
temos a chance de demonstrar o valor da psicanálise como um instrumento de
leitura e de tratamento do mal-estar de nosso mundo. Isso porque o simbólico
sempre está em déficit, pois há algo que sempre escapa no universo dos nomes e
que é o gozo.
Diante dessa errância do sujeito, nossa resposta clínica é a de buscar não
apenas a abertura para uma escuta diferente do sofrimento humano, mas,
sobretudo, a localização e a construção do sintoma em sua relação com o
Inconsciente. O trabalho analítico não se faz sem a linguagem, e, nele, a série dos
significantes permite a localização nessas marcas dos efeitos dos encontros
contingentes que o sujeito teve com o gozo.
Que o simbólico esteja em déficit é uma ocasião para que a intervenção do
analista, que não se dá apenas sob a forma de um operador simbólico, tenha
consequências. Esse encontro pode criar possibilidades para que um tratamento
ético da demanda abra um novo espaço subjetivo.
3) Almanaque On-line: Uma das consequências do desfuncionamento do
simbólico é o aumento da violência. Seria essa a mesma violência apresentada por
Freud no texto “Psicologia das massas e análise do Eu”, como sendo o narcisismo
das pequenas diferenças?
Cristina Drummond: Quando Freud fala do narcisismo das pequenas diferenças,
ele está tratando da questão da segregação. No fundo, ele se atém ao fato de que
os grupos se segregam pela não aceitação das diferenças de gozo. Lacan também
abordou o tema da violência em diferentes momentos de seu ensino, aprofundando
uma reflexão sobre a segregação e trazendo à luz novos aspectos dessa questão. O
que ele diz é que a segregação é inerente ao discurso, que é maneira de fazer laço
social. E, se a segregação é própria ao laço social, ela é um dado da estrutura da
relação do sujeito com o outro.
Não sei se há um aumento da violência, já que a agressividade faz parte
constituinte da relação entre os seres falantes. Temos sem dúvida o crescimento da
criminalidade, da insegurança e do mal-estar nas relações sociais.
A referência freudiana ao narcisismo das pequenas diferenças remete ao
mal-estar na cultura. Nossa época, a época lacaniana da psicanálise, foi nomeada
por Miller como “a época do Outro que não existe”. Miller ainda explicitou que o
Outro aparece como mau, gozador, em oposição ao Outro ideal, que organizava o
mundo, no tempo de Freud. Temos, portanto, de situar os impasses da
contemporaneidade, sobretudo as novas formas de gozo que, no lugar dos
significantes mestres ideais, promovem os laços entre os sujeitos.
Podemos definir a violência como um sintoma social. Em sua essência, todos
os sintomas o são, já que o laço com o outro, o laço social, é sempre sintomático.
Para nós, analistas, a questão é como podemos responder a esse sintoma, como
vamos tratar da violência de uma maneira distinta da dos demais discursos, que,
muitas vezes, o alimentam de sentido.
Miller nos disse que o mundo arrasta a psicanálise em sua esteira e que
devemos nos negar a consentir com isso, se queremos apostar que a psicanálise
tem um fio de prumo que deve ser mantido em quanto tal. No que diz respeito ao
sintoma, a posição do analista leva em conta um imperativo ético: a interpretação.
Esse imperativo nos coloca numa direção contrária à da medicalização da violência,
à de seu tratamento pelo universal do aprisionamento, ou, ainda, buscamos, em
cada caso, ler a subjetividade que subjaz à situação. Isso é muito importante,
sobretudo nas situações de violência familiar, violência de gênero, para nos
afastarmos da leitura da vitimização, que mantém o sujeito no anonimato. Não
temos que nos colocar ao lado da vítima, julgar, proteger ou cuidar da segurança.
Nosso compromisso é interpretar o real que está em questão em cada situação
particular e que não é evidente nem universal.
4) Almanaque On-line: Ao se dizer que atualmente passamos do binário clínico
neurose-psicose para a psicose generalizada, perguntamo-nos se considerar as
estruturas — neurose, psicose e perversão — traz ainda alguma função para os
tratamentos.
Cristina Drummond: É claro que partir do ponto de vista da psicose generalizada
nos faz pensar o binário clínico neurose-psicose de uma outra maneira. Essa leitura
não nos deve levar a dispensar, entretanto, a clínica estrutural; ela apenas nos faz
avançar no sentido de nos permitir ler o que nossa experiência nos apresenta.
Freud nos ensinou que a clínica psicanalítica é feita nos detalhes, e ele foi
acrescentando novos aspectos ou nuances à medida que se foi deparando com
situações que interrogavam seus conceitos teóricos.
Ainda é necessário dar conta das formas atuais das neuroses clássicas e
ainda pensamos a clínica da histeria e da obsessão organizada em torno do
sintoma, em oposição à clínica dos transtornos e distúrbios do DSM.
No que diz respeito à clínica das psicoses, as psicoses ordinárias se
constituíram como um programa de investigação em nossa orientação lacaniana
que ainda está em curso. Psicose ordinária, diz Eric Laurent, é um termo forjado a
partir do termo psicose, que data do século XIX, e do termo ordinária, que se refere
à filosofia da língua ordinária, investigação levada em curso no século XX. Esse
termo novo quer dar conta do que ocorre no século XXI, sem o apoio de um
discurso estabelecido. Pensar a psicose como generalizada implica uma
continuidade dos modos de gozo, o que é um pouco diferente da clínica em que
buscávamos nos fenômenos elementares a certeza do diagnóstico. Não é que os
fenômenos elementares deixaram de nos orientar, ainda nos fiamos neles. É que o
tratamento do gozo se dá de maneira particular para cada sujeito, e a busca desse
saber-fazer não se reduz a uma leitura do reino do Nome do Pai, da sua presença
ou ausência, do delírio como suplência à sua falta, da ordenação do sujeito pela
metáfora e pelas cadeias significantes. Nossa clínica condiz mais com a pluralização
dos nomes do Pai e com a presença dos significantes que não fazem série nem
localizam um sujeito como efeito da cadeia simbólica.
Ainda em nossa clínica contemporânea, cabe uma investigação das
diferentes homossexualidades, já que a extensão do mundo gay tem um peso
muito grande em nossa cultura. Conforme muitos gays em análise nos têm
ensinado, a homossexualidade se mostra como uma resposta não homogênea e
que não pode ser identificada a uma estrutura clínica determinada. A resposta de
Freud, em seus “Três ensaios”, segundo a qual explicar a homossexualidade é tão
complicado quanto explicar a heterossexualidade, devendo-se tomar as duas
soluções como uma resposta edipiana, deverá certamente ser interrogada e
ampliada por essa investigação.
5) Almanaque On-line: O Ministério da Educação lançou, recentemente, uma
campanha contra a discriminação sexual, com alguns vídeos voltados para
adolescentes. Um desses vídeos apresenta a estória de um jovem indeciso sobre
sua escolha sexual. Depois de se envolver com uma menina e, em seguida, com
um menino, esse jovem acaba por concluir que o melhor é não ter que se decidir se
gosta de meninos ou meninas. Escolhe os dois. Segundo afirma, “a probabilidade
de ser feliz aumenta se não tiver que escolher”. Essa opção “unissex” remete-nos
ao “ex-sexo”, apontado por Lacan, ao fora da partilha sexual, e tem-se apresentado
frequentemente entre os jovens. De que forma podemos pensar aí a
responsabilidade?
Cristina Drummond: No Seminário 20, Mais, ainda, Lacan toma o caso da
masculinidade e nos diz que, para todo ser falante, quaisquer que sejam seus
atributos masculinos, está permitido se inscrever do lado feminino das fórmulas da
sexuação. O fato de Lacan dizer que está permitido indica que isso não está
determinado. E é por isso também que ele diz que somos sempre responsáveis por
nossa posição de sujeito. O sujeito é responsável por suas escolhas, por seu gozo.
Essa responsabilidade é também o que a interpretação das situações de violência
vai buscar esclarecer. Assim, de nossa posição de sujeitos sexuados também somos
responsáveis e temos que responder por nossa escolha, coisa que uma análise pode
ajudar. Nesse sentido, a investigação sobre as homossexualidades contemporâneas
tem muito a nos ensinar, já que a clínica dos adolescentes nos mostra que, muitas
vezes, a resposta “sou homossexual” chega ao sujeito diante da impossibilidade
simbólica de fundar, na significação fálica, uma partilha sexual. De qualquer forma,
desresponsabilizar o sujeito não é algo que a psicanálise possa sustentar.
1
Psicóloga, membro da EBP/AMP e Diretora da EBP para o biênio 2011-2013. Autora de vários textos,
dentre eles “A clínica psicanalítica diante dos limites do simbólico” e “Ter um corpo hoje”, ambos de
2011, inéditos.
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