domingo, 1 de abril de 2012

TEXTOS DE VLADIMIR SAFATLE


Vladimir Safatle:O “Bem” está mal acompanhado

As pessoas se valem do conceito “Bem” para justificar atos de ignomínia. A partir disso, diz o filósofo Vladimir Safatle, constatamos que o “Bem” anda muito mal acompanhado. Além disso, não é necessário valores como “Bem” e “Mal” para fundar uma filosofia moral, aponta.
Categoria teológica “vaga, imprecisa, completamente maleável a partir dos interesses do momento”, o Mal está ligado ao prazer de fazer sofrer, e revela a tendência à destruição que existe em todo o sujeito. A constatação é do filósofo Vladimir Safatle, na entrevista concedida, com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line. Podemos sublimar essa tendência, o que nos dá pistas para compreender “porque todo processo de criação está sempre envolto em dinâmicas de destruição. È interessante perceber que aquilo que estigmatizamos como o ‘Mal’ é, no fundo, a base dos processos criativos que admiramos”. Na opinião de Safatle, não tem sentido falarmos em Bem e Mal em nossos dias, já que há uma profusão de pessoas “que usam a defesa do Bem para justificar tortura, ‘guerras justas’, estigmatização da diferença e intolerância. Com defensores desta natureza, o mínimo que se pode dizer é que o Bem está mal acompanhado”. Não há necessidade de valores como “Bem” e “Mal” para fundar uma filosofia moral, continua, “até porque estamos longe de ter um acordo a respeito do que ‘Bem’ pode significar”. Safatle menciona os ensinamentos do apóstolo Paulo como importantes para compreensão que o Mal não é um valor supremo, mas adverte: “Não deixa de ser interessante observar que aqueles que mais repetem a centralidade dos valores cristãos são os menos dispostos a realmente levá-los a sério”.
Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e em Comunicação Social, pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, Vladimir Safatle é mestre em Filosofia pela USP, e doutor em Lieux et transformations de la philosophie pela Université de Paris VIII, com a tese La passion du négatif: modes de subjectivation et dialectique dans la clinique lacanienne. Professor da USP, atualmente desenvolve pesquisas nas áreas de epistemologia da psicanálise, desdobramentos da tradição dialética hegeliana na Filosofia do século XX e Filosofia da Música. É um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Filosoficamente, como o Mal pode ser explicado?
Vladimir Safatle - Não creio que o Mal seja uma categoria filosófica, mas meramente uma categoria teológica. Ou seja, do ponto de vista filosófico, não creio que precisamos operar com uma categoria como o "Mal". Ela é vaga, imprecisa, completamente maleável a partir dos interesses do momento. Mesmo como categoria moral, ela é inútil, já que obscurece a compreensão das dinâmicas psicológicas em operação na constituição da vontade e da ação.
IHU On-Line - Por que o senhor humano se compraz em praticar o Mal? Há em nós uma tendência irresistível a ele?
Vladimir Safatle - Se você partir da ideia de que o Mal está profundamente vinculado ao prazer de fazer sofrer, então é possível termos um pouco mais de clareza nesta discussão. Talvez fosse o caso de levar em conta a ideia de que há, em todo sujeito, uma tendência à destruição. Este sim é o problema que nos atormenta, já que sabemos que ele está presente em todos nós. Podemos fazer três coisas com tal tendência:
- permitir que ela se desenvolva como tendência de autodestruição;
- deslocar tal tendência para um objeto exterior ou;
- sublimá-la.
A terceira hipótese talvez nos explique porque todo processo de criação está sempre envolto em dinâmicas de destruição. Não deixa de ser interessante perceber que aquilo que estigmatizamos como o "Mal" é, no fundo, a base dos processos criativos que admiramos.
De toda forma, uma sublimação completa nunca é possível. Por isto, precisamos sempre compor com uma certa dose de masoquismo e sadismo. Estas operações estão longe de serem simples e estáveis. Em certos momentos da vida, precisamos recompô-las, sempre com o risco de tudo dar errado. Mas talvez precisamos aprender a viver com tal instabilidade. Se admitíssemos de maneira mais concreta nossa falibilidade, saberíamos lidar melhor com tal instabilidade.
IHU On-Line - Numa época tão niilista quanto a nossa e, portanto, relativista, qual é o sentido de falarmos em Bem e Mal?
Vladimir Safatle - Nenhum. Por sinal, o que mais temos hoje são pessoas que usam a defesa do Bem para justificar tortura, "guerras justas", estigmatização da diferença e intolerância. Com defensores desta natureza, o mínimo que se pode dizer é que o Bem está mal acompanhado. De toda forma, não é a primeira vez que isto ocorre. Aproveito para dizer que não precisamos de valores como "Bem" e "Mal" para fundar uma filosofia moral, até porque estamos longe de ter um acordo a respeito do que "Bem" pode significar. Talvez precisamos de uma filosofia moral fundada na noção de "conservação das condições de conflitos sobre valores". Ela precisaria ser também uma moral das consequências onde a exigência de se reconhecer no sofrimento do outro seria seu princípio central.
IHU On-Line - O Mal ganha requintes de exacerbação com o ressentimento, que se converte em vingança. Como analisa a tríade vingança-perdão-memória em nossa sociedade? Somos cada vez mais vingativos e não conseguimos perdoar?
Vladimir Safatle - Só é possível perdoar aquele que reconhece o crime que fez. No entanto, vivemos em uma sociedade onde crimes sequer são nomeados como tal. O exemplo da questão da tortura no regime militar é extremamente ilustrativo. Do ponto de vista jurídico, sequer houve crime, já que não houve nenhum processo onde agentes do Estado tiveram de declarar terem cometido atos de tortura (o único caso é o coronel Ustra , ainda em julgamento). Tudo o que posso dizer é: se não há crime, então nunca haverá perdão.
IHU On-Line - Acredita que existe perdão, num sentido de reconciliação nacional, ou o que acontece apenas é um esfriamento, um distanciamento dos fatos?
Vladimir Safatle - Esta é uma boa questão. Sociedades nunca são uma unidade. Elas são sempre divididas a respeito do que queremos, do sentido da história. Por exemplo, os debates em torno da Lei de Anistia demonstraram que não há uma História do Brasil. Há pelo menos duas, absolutamente antagônicas. No entanto, uma certa reconciliação ocorre quando encontramos, para além destes antagonismos, um solo comum de recusa. Algo como: isto todos nós nunca aceitaremos. Duro é descobrir que nem este solo comum nós temos. Por exemplo, para mim sempre foi claro que John Locke  tinha razão. Quando um Estado se torna ilegal, quando se torna uma tirania, toda ação contra ele é uma ação legal. Mas, no Brasil, há pessoas que conseguem estar aquém até mesmo de uma concepção liberal de democracia e de direito à resistência.
IHU On-Line - Qual é a importância do Cristianismo para a compreensão de que o Mal não é um valor supremo, que não triunfa sobre o Bem?
Vladimir Safatle - Talvez o melhor legado do cristianismo seja a afirmação do apóstolo Paulo , segundo a qual, no final dos tempos, o Anticristo virá falando como os cristãos, repetindo a todo o momento "Senhor", "Senhor", mas ele poderá ser identificado por seus atos. Não deixa de ser interessante observar que aqueles que mais repetem a centralidade dos valores cristãos são os menos dispostos a realmente levá-los a sério.
IHU On-Line - Como é possível diferenciar o dever de mantermos a memória de uma simples vitimização?
Vladimir Safatle - A vitimização dá ao outro a condição de mera vítima que deve ser objeto de cuidados terapêuticos, feitos por um poder que deve ser reconhecido como tal. Ela é o bloqueio de toda transformação do sujeito em sujeito político. O sofrimento da vítima é particular. No entanto, o dever da memória demonstrar como o sofrimento deste particular é, no fundo, uma injustiça feita contra toda sociedade, ele é um sofrimento social, mola de transformações políticas.

VLADIMIR SAFATLE 

FOLHA DE SP - 13/03/12

"Os artistas são como os filósofos, têm frequentemente uma saúde frágil, não por causa de suas doenças ou de suas neuroses, mas porque viram na vida algo grande demais para qualquer um, grande demais para eles, e que pôs neles a marca discreta da morte." Tal afirmação de Gilles Deleuze e Félix Guattari tem o mérito de fornecer um diagnóstico de época.
Se a ideia estiver correta, então a arte e a filosofia sempre perderão força em épocas que têm medo da doença e da neurose, épocas que veem nelas apenas momentos vazios que devem ser aniquilados o mais rápido possível.
Mas, muitas vezes, a doença é, no fundo, a preservação de um futuro em suspenso. Seu trabalho consiste em lembrar-nos que nossa saúde ficou pequena demais, que a vida que se repete na saúde não consegue produzir formas para o que parece "grande demais". Por isso, a saúde que encontramos depois da doença nunca é o retorno ao estado anterior. Compreender que nunca voltaremos ao estado anterior é condição para romper com a fixação em algo que acaba apenas por nos aprisionar no que não tem mais força para perpetuar-se.
Alguns poderiam ver nesse "topos" uma recuperação da velha crença romântica tardia na "formação pelo sofrimento". Outros veriam, ao contrário, uma maneira peculiar de acreditar que a vida sempre consegue encontrar respostas para os problemas que ela mesma coloca, desde que estejamos dispostos a ouvir as perguntas.
Como bem nos mostrou um psicanalista como Jacques Lacan, as neuroses são questões, assim como a doença é um tensionamento da vida -o que talvez nos explique porque não há organismo absolutamente saudável, nem sujeito desprovido de sintoma.
Essa é uma estratégia dos que acreditam que a verdadeira perspectiva moral consiste em estar à altura do que nos ocorre. Os que sentiram com muita proximidade a neurose podem usar suas forças para esquecê-la, um pouco como gostaríamos que nosso organismo esquecesse as doenças pelas quais passou. Outros encontrarão nela suas melhores questões, de maneira distorcida e mal colocada.
Que um dos maiores artistas plásticos vivos, Anselm Kiefer, tenha construído um impressionante conjunto de obras a partir de materiais em ruínas, lembranças gastas, imagens de grandiosidade envelhecidas pelo tempo, eis algo que parece validar a afirmação de Deleuze e Guattari. Sua obra lembra como há algo que passou arruinando as formas que tínhamos, algo que deixou nossas figuras "pequenas demais", imprimindo nelas a marca discreta da morte. Tais artistas nos mostram que nossa época não desconhece o verdadeiro movimento.





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