por Jésus Santiago
A clínica universal do delírio demonstra ser exigente e rigorosa quanto à sua aplicação diferencial no campo da psicose e da neurose. Ao postular seu aspecto universalizável, intenciona-se contrapô-la à uma concepção deficitária e negativa, pois à prática analítica importa fazer prevalecer, no delírio, a função de defesa diante do real do gozo. É seu invólucro de defesa, ou, mais precisamente, o seu papel de biombo, que dá substância à arquitetura própria da chamada invenção delirante de saber. Evidentemente, a definição de que todo delírio é saber apenas se justifica tendo-se em vista o fato de que o saber calcado na função significante se reparte de um modo distinto nos casos em que o recalque se constitui, ou não, como o modo preponderante de defesa do sujeito.
Como propõe Miller, o sujeito psicótico apresenta-se como “o delirante que não retrocede diante da elaboração de saber, diante do elemento de delírio que carrega sempre algo da invenção”[1]. Por outro lado, o sujeito dotado do recalque, apoiando-se na substituição significante própria do retorno do recalcado, traz consigo o S2 de que necessita e, consequentemente, pode responder por meio do valor substitutivo do sintoma. No entanto, ao se traduzir a foraclusão do Nome-do-Pai em termos de uma foraclusão generalizada, é a foraclusão desse S2 que vem substituir um S1 que se apresenta no cerne da operação foraclusiva. Diante disso, a resposta do sintoma, nesse sujeito, guarda a condição, em determinadas situações, de não se decifrar pelo recurso à metáfora e surge, assim, marcado pela interpolação do enigma.
A atualidade da clínica psicanalítica se interessa por configurações sintomáticas advindas do efeito do delírio generalizado que se institui em função do próprio impossível que envolve a relação sexual e repercute nas práticas contemporâneas com o sexo. Ao submeter-se à exigência de transparência, depara-se com o sexo em toda parte: no cinema, na televisão, nos jornais e revistas, na música, no shopping e, sobretudo, nas redes sociais de relacionamento da internet. Nos anos 70, Lacan prenuncia que “colocar o sexo na ordem do dia e exibi-lo nos diversos cantos das ruas, tratando-o como um detergente qualquer nos carrosséis televisivos, não faz dele uma promessa de benefício”[2]. Não diz, por outro lado, que se trata de um mal corrosivo de nossas sociedades. Tampouco esse tipo de difusão se constitui como um meio apropriado para tratar as angústias e os problemas particulares dos indivíduos. Em definitivo, é um fenômeno, nos diz Lacan: “da moda, a serviço dos disfarces liberalizadores que nos é fornecida, como um bem advindo do alto, por uma sociedade que se qualifica como permissiva”[3].
A meu ver, a lógica dessa proliferação do sexo apenas se revela ao encará-la como um delírio que, valendo-me dessa passagem de Lacan, nomeio como um delírio de permissividade. Tomo o delírio de permissividade como um mito moderno que, embora confira publicidade à pornografia e torne corriqueira as mais diversas práticas sexuais, não esgota, para o sujeito, o teor misterioso e enigmático do encontro amoroso. Vale dizer que a generalização delirante da permissividade não destitui o valor de enigma que impregna as práticas sexuais contemporâneas, pois estas últimas não são capazes de vedar o efeito real da não-relação entre os sexos.
Em termos clínicos, correlaciono o delírio de permissividade com o lugar dominante que o mais-de-gozar assume em nossa civilização em detrimento do ideal do amor harmonioso e duradouro. Precisa-se, no entanto, que, se o objeto a ocupa o posto de comando, isto não quer dizer que as relações entre os sexo funcionam a mil maravilhas. Constata-se que, quanto mais se exalta e se busca a permissividade no laço social, mais o sexo é fonte de mal-estar e desencontro. Como delírio generalizado, a permissividade e a tolerância desenfreada não mascaram os percalços da não-relação, nem evitam o surgimento de proibições estranhas e enigmas insolúveis, como exemplifica o fenômeno da pedofilia. Ainda que a permissividade se dissemine com os objetos técnicos de suplência que favorecem a descrição infinita dos cenários eróticos possíveis, o mistério da sexualidade permanece intacto e sua incompreensibilidade subsiste mais do que nunca na forma variada de suas manifestações
sintomáticas[4].
Nesse contexto, há uma demanda de tratamento bastante corrente na prática analítica dos dias de hoje: um sujeito solicita um tratamento sem dar crédito à existência do inconsciente, mesmo porque sua crença se aloja no gozo que provém de suas fantasias sexuais. O tratamento confronta-o com a apreensão do objeto que se imiscui na fantasia para encenar sem precaução e sem prazos o imperativo de gozo que, muitas vezes, reduz o sujeito ao silêncio e à imobilidade dos usos da palavra reveladora de seu ser de desejo. Ainda assim, uma margem de manobra significativa para a operação analítica pode ser obtida, visto que as fantasias sexuais não constituem um entrave para que um sujeito tome a palavra acerca das dificuldades que experimenta no relacionamento com o Outro sexo.
Tratar o real da não-relação através do virtual e do imaginário apenas amplia e aprofunda o aspecto da crença no Outro, pois o gozo inerente ao tornar-se objeto do Outro se desnuda ainda mais. Lacan, em vários momentos de seu ensino, insiste no fato de o elemento perverso da fantasia presentificar uma suposição, movida pela crença de que, ao se almejar o desejo do Outro, captura-se o objeto. Essa suposição embasa-se em um jogo de engodo, constitutivo da própria satisfação da fantasia voyeur. Há sempre uma relação de logro com o objeto[5], porque, no momento em que o objeto se mostra, o sujeito se torna um equivalente deste objeto, e logo desaparece do cenário virtual.
Ao tentar aprisionar, por exemplo, o objeto olhado, o sujeito se confunde com o objeto, isto quer dizer que, para ele, o olhar se instala no Outro, ou seja, está sempre do lado de fora[6]. É por isso que apenas apreende-se a natureza dessa armadilha do olhar, na pulsão escópica, para-além da relação imaginária entre o ver e o ser visto. Aquilo que o sujeito quer ver, ele próprio desconhece; é algo que lhe concerne mais intimamente, ou seja, a petrificação presente na fascinação com a imagem acontece de uma tal maneira que, para o sujeito, o olhar se transforma no objeto inerte caracterizado pela existência de um quadro. A montagem do olhar no âmbito da satisfação pulsional é análoga àquela do quadro na medida que, em ambos, o olhar está do lado de fora. Para Lacan, nada é mais compatível com esse modo de satisfação do que a função inercial do olhar presente na força atrativa exercida pela arte do quadro. Em suma, o sujeito na fantasia escópica é um quadro[7].
É nesse ponto que o tratamento incide na insistência do recobrimento da fantasia sobre o real da não relação entre os sexos. Antes de tudo, importa ressaltar a função do objeto petrificado que o olhar assume em seu circuito fantasístico. Salienta-se, aqui, a força compulsiva da intromissão do olhar como meio para a obtenção da satisfação sexual. É essa a fonte do sucesso que a pornografia assume para os homens. A importância desse curto-circuito da satisfação escópica sobre a pulsão constitui o que Lacan denomina como o fetichismo do gozo nos homens, por oposição à erotomania do amor nas mulheres[8]. Esse fetichismo do gozo escópico é o que dificulta, no tratamento, a passagem do nível da fantasia para aquele da pulsão. Permitir o objeto deslocar-se da fixação inercial em que se encontra, é fazer o quadro tornar-se moldura. Quando Lacan conecta a lógica à fantasia, ele se refere à necessária trajetória de esvaziamento do gozo do objeto que insiste em fazer valer como o fator essencial da economia libidinal de um sujeito. É preciso efetuar essa redução do gozo com o objeto inerte para que a fantasia faça valer-se como um sucedâneo do real. Ao se fazer dela um semblante do real, a fantasia encontra a pulsão.
Evidentemente que, para obter os efeitos desta fratura, a prática analítica não faz economia dos semblantes. A força do semblante utilizada no âmbito da experiência analítica pode, de algum modo, minar o fetichismo desenfreado do gozo e, assim, age na contracorrente da permissividade delirante. A operação analítica se defronta com o fato de que a fixação na satisfação na fantasia escópica, por exemplo, se reforça pela existência do discurso universal que sanciona a permissividade com o sexo. A aposta da experiência analítica é que um sujeito possa afrontar o insuportável da questão feminina pela via que inscreve a relação amorosa naquilo que resta da indignidade pulsional, da Coisa, do Das Ding de cada um. É o amor mais digno que se abre como solução para aquele que se confronta com a resposta permissiva que, como constatamos em muitos casos, especialmente sem o recurso à experiência analítica, tende insistentemente a eternizar-se.
[1]MILLER, Jacques-Alain. La invención del delirio [1995]. In Desde Lacan. Conferencias Porteñas. Buenos Aires: Paidós, 2009, t. 2, p. 297.
[2]LACAN, Jacques. Il ne peut pas y avoir de crise de la psychanalyse [1974]. Entrevista concedida por Jaques Lacan à Emilio Granzotto, traduzida do italiano por Paul Lemoine. In le magazine littéraire. nº 428, février 2004. p.24-29
[3]LACAN, Jacques. Ibid. p.25.
[4]LAURENT, Éric. Le programme de jouissance n’est pas virtuel. In La cause freudienne, Les surprises du sexe. Paris: Navarin, nº 73, décembre 2009. p.42-49.
[5] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11, Os quarto conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. Rio de Janeiro, Zahar, 1985. p. 102.
[6] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11, Op. Cit. p. 104.
[7] Ibid. p. 102.
[8] LACAN, Jacques. Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina [1958]. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.742.
* Este texto é uma versão reduzida da apresentação que ele realizou no dia 7 de abril deste ano, no primeiro Seminário Preparatório para a XVI Jornada da EBP-MG
http://jornadaebpmg.blogspot.com.br/2011/09/experiencia-analitica-na-epoca-da.html
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