segunda-feira, 11 de junho de 2012

Flash: entrevista com Agnès Aflalo


Relatório sobre o autismo: excluir os psis para melhor engordar os laboratórios?
Publicação: 11/03/2012 (Jornal Le Monde)

A psiquiatra e psicanalista Agnès Aflalo esclarece algumas implicações e não-ditos do recente relatório sobre o autismo. Le Monde

“Não consensuais” e “não pertinentes”. Eis como o novo relatório sobre o autismo considera as abordagens psicanalíticas e psicoterapêuticas.  A Alta Autoridade de Saúde (La Haute Autorité de Santé – HAS) recomenda preferencialmente uma abordagem “educativa, comportamental e desenvolvimentista”. Concretamente: não é recomendável que os autistas se relacionem com psicanalistas, ou com pessoas orientadas pela disciplina freudiana, mas é aconselhável encaminhá-los aos adeptos das terapias cognitivas e comportamentais (TCCs)... Esclarecimentos sobre certas implicações e não-ditos deste relatório com a psiquiatra e psicanalista Agnès Aflalo, médica-chefe do CMP crianças e adolescentes de Bagnolet e autora do “Assassinato sem sucesso da psicanálise” (Ed. Cécile Defaut)[1].

MQ: Agnès Aflalo, inicialmente a senhora poderia precisar, em algumas palavras, as diferenças entre as abordagens psicanalíticas e comportamentais do autismo?

AA: O modelo das TCCs é o cão de Pavlov, condicionado através de um adestramento a responder às ordens. Daí a idéia das TCCs de fazerem o mesmo com humanos... e em particular com os autistas, como faz o método ABA. E hoje eles querem impor a todos esse método! Quanto aos psicanalistas, eles não propõem um adestramento. Eles apostam na dignidade humana. Eles partem do que existe e inventam com cada paciente a resposta que lhe convém, a ele e somente a ele e também com os autistas. Atenção, os psis não são contra os medicamentos, mas somente quando estes forem necessários ou úteis.  Portanto, não é para todo o “espectro autista” tal como é forjado hoje. O sob-medida vai contra a abordagem pretensamente científica que as TCCs promovem...
A respeito da abordagem psicanalítica do autismo, eu proponho aos nossos leitores a esclarecedora Entrevista Coletiva da Escola da Causa Freudiana, publicada no site “A Regra do Jogo” (La Règle du Jeu).

MQ: Depois do escandaloso documentário Le Mur, recentemente condenado pela justiça, uma denúncia, (mais uma vez) sobre a psicanálise. Mas por que tanta fúria?

AA: Simplesmente porque a psicanálise atrapalha os bons negócios de alguns... ou pelo menos não os favorece. Há trinta anos, a saúde pública vem se reduzindo  cada vez mais a um mercado no qual reina a lógica do lucro,  não é mais um espaço orientado pela lógica do bem comum. E os grandes artesãos desse desvio não são outros senão os laboratórios farmacêuticos e seus “amigos” no campo psi: as TCCs, que “recortam” as doenças com questionários, onde para cada sintoma corresponde um medicamento...

MQ: A senhora poderia ilustrar esse desvio?

AA: Em 1980, quando apareceu nos Estados Unidos o DSM-III (a terceira edição do Manual de diagnóstico dos distúrbios mentais, que serve de referência em escala mundial para essas questões), o autismo era considerado muito raro: ele dizia respeito somente a duas ou quatro pessoas em 10.000. Mas, no DSM-V (ainda não publicado, mas cuja versão preliminar “vazou” em 2010), o campo do autismo se estendeu consideravelmente, sob o nome de “Espectro do transtorno autístico” (STA) e abrangeria, a partir de então, mais de 2% das crianças de idade escolar... Passamos então de 0,02 a 2% das crianças!

MQ: A quem esse aumento dos efetivos favorece?

AA: Sabemos que, em todo caso, para lutar contra o autismo, a HAS preconiza hoje TCCs associadas a estratégias medicamentosas diversificadas, “úteis para diminuir ou suprimir comportamentos inadaptados” à base de neurolépticos, de opiáceos, de carbonato de lítio, de betabloqueadores, de antidepressivos, de “pílulas da obediência”, de antifungicidas, de tratamentos hormonais, de vitaminas, de cálcio... Enfim, um mercado lucrativo para os fabricantes de medicamentos. Em 2010, Carol Bernstein, presidente da APA (Associação Americana dos Psiquiatras), não dizia que era preciso “fazer com que os pacientes aceitassem os tratamentos farmacológicos recém lançados”?
Já disse antes que os psicanalistas não são contra ao uso de medicamentos para acompanhar o tratamento do autismo, somente acho que, estendendo consideravelmente o campo do autismo, estende-se oportunamente o mercado... Mas tem mais. Ao assegurar atualmente a promoção de um “autismo genético”, o DSM cria um novo mercado: o dos testes genéticos – faturados em alguns milhares de euros e que, vamos apostar, serão em pouco tempo indicados por esses mesmos laboratórios...

MQ: O que acontece com a independência da HAS e dos médicos “especialistas” da França e de outros países que acabam de entregar esse relatório? Essa virtude não é para eles um princípio fundamental? Aquele que faz o Juramento de Hipócrates não declara: “Preservarei a independência necessária ao cumprimento da minha missão”?

AA: Você se lembra do escândalo do Médiator[2]... Esse caso que revelou os conflitos de interesses entre os especialistas “independentes” e as empresas do tipo Servier, e que fizeram com que Alain Bazot da UFC – Que Choisir dissesse que o sistema do medicamento francês era “um sistema podre”. Já em 2009, o professor Philippe Even, ex-décano da faculdade de medicina Necker em Paris e professor emérito da Universidade Paris V (2), tinha declarado que os médicos especialistas franceses eram alvo dos mesmos “conflitos de interesse” que os especialistas americanos: “São as medicinas acadêmicas que asseguram a promoção dos medicamentos (...) e isso acontece da mesma forma nos Estados Unidos. Dos 1200 especialistas que trabalham junto às agências nacionais de medicamento francesas, mais da metade declaram ter ligações com as indústrias. 20% declaram não ter nenhuma sem que isso seja verificado. Os outros não se pronunciam apesar de serem obrigados a fazê-lo. As comissões de especialistas como nos Estados Unidos, são ao mesmo tempo juiz e réu”... E, mais recentemente ainda, você se lembra quando o próprio diretor da HAS, o professor Jean-Luc Harousseau, teve que reconhecer (depois de ter assinado uma primeira declaração de interesse público, que comprovava sua isenção em relação à indústria farmacêutica), que ele tinha recebido mais de 200.000 euros a título pessoal, de diversas firmas farmacêuticas, durante os três anos que antecederam a sua nomeação como diretor da Alta Autoridade... Sem contar as somas recebidas pelas estruturas de pesquisa que ele chefiava.

MQ: Esse professor Harousseau, que declara querer a todo custo “avaliar” a psicanálise, mereceria ser ele mesmo avaliado quanto à sua independência! Dito isso, quando ele diz hoje que esse relatório sobre o autismo “marca uma etapa” e que, em matéria de tratamento do autismo, “nada será como antes”, somos levados a acreditar nele... Assim como podemos acreditar no deputado Daniel Fasquelle – autor de um projeto de lei em janeiro, visando “a interrupção das práticas psicanalíticas no acompanhamento de pessoas autistas” (em proveito exclusivo dos métodos TCCs...) – quando ele diz recusar baixar as armas contra os psis, ele que seria membro do Clube Hippocrate, um clube de parlamentares (cujo site estranhamente não está mais acessível) notadamente sustentado pelo laboratório Glaxo Smithkline, um laboratório que fabrica – entre outros – antidepressivos...


Tradução: Samyra Assad e Márcia Bandeira

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