Os pesquisadores do Laboratório de
Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial
(Laps/ENSP/Fiocruz) Paulo Amarante e Fernando Freitas publicaram artigo
no blog do Cebes, destacando que o Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM-V) vem reforçar a tendência à medicalização dos
comportamentos humanos de nossa época, ao transformá-los em patológicos
em seus mínimos detalhes. Confira a íntegra do artigo em anexo.
Psiquiatrização da vida e o DSM V: desafios para o início do século XXI
Crianças que fazem muita birra sofrem de um distúrbio psiquiátrico
recentemente descoberto, a chamada “desregulação do temperamento com
disforia”. Adolescentes que apresentam, de forma particular,
comportamentos extravagantes podem sofrer da “síndrome de risco
psicótico”. Homens e mulheres que demonstram muito interesse por sexo,
quer dizer, aqueles que têm fantasias, impulsos e comportamentos sexuais
acima da temperança recomendada, muito provavelmente padecem do
distúrbio psiquiátrico chamado “desordem hipersexual”.
Essas são algumas das várias novidades que estão sendo propostas pela
Associação Americana de Psiquiatria (conhecida internacionalmente como
APA), para suceder o DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais), em vigor desde 1994. Há outras novidades que vem
chamando a atenção de todos. Por exemplo, a “dependência à internet” e a
“dependência a shopping”.
O que o DSM representa? Não
apenas para a saúde pública propriamente dita, mas para a própria
construção da subjetividade e intersubjetividade do homem
contemporâneo? A medicalização crescente do nosso cotidiano.
Apenas para se ter uma ideia da chamada “inflação” dos distúrbios
considerados objeto da psiquiatria: há cinquenta anos eram seis as
categorias de diagnóstico psiquiátrico, e hoje são mais de trezentas.
Nas últimas décadas o DSM tem servido como a bíblia para a chamada
psiquiatria moderna e para os saberes e práticas subordinados a sua
hegemonia. Os autores de suas sucessivas edições argumentam que suas
pretensões são: (1) Fornecer uma “linguagem comum” para os clínicos; (2)
servir de “ferramenta” para os pesquisadores; (3) ser uma “ponte” para a
interface clínica/pesquisa; (4) ser o “livro de referência” em saúde
mental para professores e estudantes; (5) disponibilizar o “código
estatístico” para propósitos de pagamento dos serviços prestados e para
fins administrativos do sistema de saúde; e, finalmente, (6) orientar
“procedimentos forenses”.
Os impactos provocados por
cada edição do DSM são inúmeros. Bem próximo de nós está o exemplo da
pesquisa da OMS sobre a saúde mental dos moradores da metrópole de São
Paulo. Segundo os resultados dessa pesquisa, cerca de 1/3 da sua
população sofre de algum distúrbio psiquiátrico. A grande imprensa
nacional tomou tal pesquisa para chamar a atenção da população para a
situação do sistema de assistência em saúde mental do país, que estaria
muito aquém das demandas dos cidadãos, muito em particular o SUS. E
que, sendo São Paulo uma megalópole de um país com tendências à
urbanização acelerada, o seu exemplo deve ser considerado como
alarmante.
O que escapa à maioria das pessoas que
receberam essa notícia pela grande mídia são detalhes de grande
importância para a credibilidade da própria pesquisa. Quem financiou
essa pesquisa (além da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de São
Paulo), entre outros órgãos públicos, como a própria OMS e a Opas) foram
grandes conglomerados da indústria farmacêutica: Ortho-McNeil
Pharmaceutical, a GlaxoSmithKline, Bristol-Meyers Squibb e Shire.
Curiosamente, os autores declaram não haver conflito de interesses. Se
isso não é conflito de interesses, então é necessário revisar esse
conceito!
O DSM-V chega sendo objeto de grandes
controvérsias. Basta uma consulta na Internet para se tomar conhecimento
das contundentes críticas feitas por alguns dos principais autores do
DSM-III e DSM-IV. O que o DSM-V vem reforçar ao DSM-IV? Parece ser a
tendência à medicalização dos comportamentos humanos de nossa época, ao
transformá-los em patológicos em seus mínimos detalhes. Nos termos que
vêm se tornando públicos, o DSM-V reforça a tendência de assegurar e
ampliar o mercado da saúde mental: 1) o consumo arbitrário de
medicamentos de natureza psicotrópica, sem qualquer cuidado com os seus
efeitos sobre a própria saúde de seus consumidores; (2) a expansão de
serviços de diagnóstico e de consultas; (3) a medicalização da vida.
Na medida em que o modelo “a-teórico” (como ele mesmo se define) do DSM
nos possibilita constatar, principalmente a partir dessa sua quinta
versão, que seu objetivo real não é lançar luz sobre o conhecimento dos
sofrimentos mentais, e, sim, produzir mais mercado para as intervenções
psiquiátricas, cumpre à sociedade recusar esse projeto
medicalizante/patologizante. As entidades de saúde, particularmente as
médicas, os Conselhos de Saúde e de Direitos Humanos, os órgãos públicos
de normalização, regulação, fiscalização (Ministério da Saúde,
Ministério Público, conselhos profissionais, dentre outros) precisam se
posicionar e cobrar a responsabilidade dos autores e multiplicadores de
tais iniciativas.
* Paulo Amarante é presidente da
Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), diretor do Centro
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pesquisador do Laboratório de
Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial
(LAPS/ENSP/Fiocruz)
* Fernando Freitas é diretor da Abrasme e pesquisador do LAPS/Fiocruz
Fonte(s): Cebes
http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/29782
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