Márcio Peter de Souza Leite • Jorge Forbes
(in Carta de São Paulo, número 10, agosto/setembro/2003)
Em 10 de novembro de 1998, Márcio Peter de Souza Leite e Jorge Forbes
entrevistaram Jacques-Alain Miller, numa tarde agradável, no "Harmonia", em São Paulo
1a. Questão: A Letra e a Carta Amassada*
Pergunta - Você no livro "Os signos do gozo", aponta que, aí, não se trata de um progresso na obra de Lacan, mas de uma mudança de axiomática; apontando esta mudança como sendo o "Há do Um" (II ya de l'Un). Então, em torno desta questão, o que se nos impõe nos nossos estudos é: qual seria a relação entre o Um e o traço unário, entre o Um e a letra; por conseguinte, a relação entre a letra e o traço unário? Isso porque, na obra de Lacan, apresenta-se a letra como o suporte material do significante. Mas em Lituraterre, Lacan coloca a letra como o precipitado do significante. Então, existiriam duas possibilidades: a letra anterior ao significante, ou a letra como conseqüência do significante. Nossa primeira pergunta aponta esta questão.
Miller - Desde o começo de seu
trabalho clínico, Lacan interessou-se pelas formas verbais da expressão.
Há um conhecido artigo do psiquiatra Paul Guiraud, ao qual Lacan se
refere, que estuda as psicoses, as maneiras de dizer, o desvio
específico do sentido, as formas aberrantes do significante. Em sua tese
sobre a psicose, Lacan claramente utiliza o que naquela época podia ter
de filosofia, ou de linguagem, ou de lingüística, quase como se
esperasse o que viria depois, ou seja, a lingüística estrutural. Existia
já como um lugar preparado e vazio - não falemos ainda de seu ensino -
em sua abordagem das coisas; havia uma chamada em direção a uma ciência -
ou, pelo menos, uma consideração do tipo científico - da relação entre o
suporte material da expressão e os efeitos do sentido. De tal maneira
que, depois da 2a. Guerra Mundial, quando Lacan entrou em contato com a
lingüística estrutural, ele adotou esse ponto de vista, não diretamente,
mas sim a partir da intuição primária de Lévi-Strauss - do ponto de
vista saussuriano - tal como Lévi-Strauss pôde conhecê-Io em Nova
lorque, enquanto residia nos Estados Unidos. Ele lecionava no mesmo
lugar que Roman Jakobson e Lévi-Strauss, ouvindo-o, teve a intuição
primária de que isso lhe serviria na antropologia. Foi realmente um
passo essencial que deu consistência à idéia de ciência humana, no que
concerne à cultura, à antropologia, e às disciplinas deste tipo, que
poderiam, assim, escapar ao Humanismo ou ao Empirismo, para tornarem-se
científicas através da abordagem estrutural dos fenômenos da cultura.
Se houve algo que se pode chamar de ensino, foi
pela aplicação desta perspectiva, que dava um algoritmo para transformar
- de maneira sistemática os dados que haviam sido compilados, numa
perspectiva que se pode chamar de humanista, empirista, para
transformá-los e organizá-Ios como estrutura. Era como um algoritmo,
pois consistia em aplicar sistematicamente a vivência "significante
-significado", e a noção de uma ordem sistemática do significante
extensiva a todos os fenômenos da cultura humana. Isso se percebe em
Lacan, e corresponde ao impulso de seu ensino; seus dez primeiros
seminários, cada um consiste na leitura, pelo menos como ponto de
partida, de uma ou de duas obras de Freud, transformando
sistematicamente o que Freud trouxe e organizando o material de maneira
estruturalista. Ou seja, uma idéia simples, uma divisão simples entre
significante e significado, e passar através dela os dados clínicos,
através dos conceitos, através de suas conseqüências, e mostrando que as
dificuldades que Freud encontrava, seus paradoxos e seus impasses, se
solucionam se fazemos essa partição entre significante e significado.
Podemos dizer, também, entre simbólico e imaginário. Foi como uma
explosão em cadeia. Este movimento é muito perceptível. Por exemplo,
tomemos a famosa posição do falo. Lacan mostra que se concebemos o falo
de maneira empirista como o órgão, o pênis, não se entende a existência
da fase fálica entre os dois sexos; somente se concebermos o falo como
simbólico, diferente da forma e da imagem do pênis e da realidade do
órgão, somente com essa distinção se ordena o material clínico. O
conceito de recalque, ou regressão, se o concebemos apenas sobre um
plano de realidade, implicaria que o paciente realmente voltaria,
passaria pelas fases anteriores de seu desenvolvimento, e terminaria
como um bebezinho chorando no divã. A regressão não é isso. Há um plano
simbólico da regressão, que é retornar aos significantes de demandas
anteriores, mas não na realidade. Lacan também mostra que se
consideramos o pai somente como um personagem real, não se compreende a
função que possui, e que somente se distinguirmos entre o pai real, o
pai imaginário e o pai simbólico, se ordenam os dados clínicos.
Este algorítmo, fundamentalmente baseado na
distinção" significante-significado", sob sua forma mais complexa é a
divisão entre o simbólico e o imaginário. Este algoritmo deu uma grande
impressão de novidade e de potência, porque nada resistia à força desse
ordenamento. Isso fundamentou a idéia de Lacan, e continua sendo a base
da popularidade de seu ensino, e é o que agora colegas que não foram
formados por ele, entendem como sendo Lacan: o pai simbólico, o falo,
tudo isso o resultado do algoritmo inicial. Isso, claramente, colocava
em primeiro plano o semântico, o que implicava uma certa redução do
ponto de vista econômico de Freud. E é isso que, de maneira
aproximativa, os contemporâneos daqueles tempos consideraram como um
intelectualismo de Lacan. O que chamavam assim era a primazia que Lacan
dava à semântica sobre o econômico, ou seja, da semântica sobre o
libidinal. E Lacan dava razões para isso, pois o significante, na sua
emergência, na sua ação, em si mesmo, implica uma deslibidinização, um
elemento mortífero, uma ação mortífera, que se encarna sumariamente no
que chamou de "barra significante" .Para se transformar em significante
um dado, um elemento tomado da realidade, ele deverá ser esvaziado,
comprimido, mortificado e é, por isso, que surge, podemos dizer, como
emblema. De tal maneira que, correlativamente ao algoritmo inicial, há
uma barra evidente, que é a que separa "significante significado", que
também suprime o libidinal, para dar lugar à combinação simbólica.
Lacan, através disso, podia simultaneamente dar conta da castração.
Fazia da castração freudiana o efeito da linguagem ou, melhor dizendo,
do significante. Isso implicou muitas transformações dos conceitos
freudianos, em particular, do conceito de pulsão. Lacan claramente deu
uma versão deslibidinizada de pulsão, quando a apresenta como uma
demanda, uma demanda articulada com significantes primários, diferentes
dos significantes uportes do significado, ou como uma cadeia
significante inconsciente.
Está claro que isso permitia dar conta de
muitíssimas coisas com grande eficácia, mas deixava a necessidade de
conceituar o libidinal como tal. que aparecia na conceituação sempre
como uma inércia, como um resto, como algo a mais que aparecia na
dimensão psicanalítica. Quer dizer, como algo real, quando na
psicanálise se tratava essencialmente de elementos simbólicos e
imaginários, de elementos significantes e de significados. E havia, além
disso, o real, do qual Lacan dizia, no Seminário IV: "Do real não
falamos". O real não pertence a nossa operação.
Mas, acredito que precisou conceituá-lo, cada vez
mais, até chegar na sua criação própria, para além do efeito dessa
perspectiva estruturalista, como objeto "pequeno a", que apareceu
primeiro à margem de seu ensino, e que se resume finalmente no esquema
dos quatro discursos. Existe o significante que, no mínimo, deve ser
representado como um par significante, uma vez que ele ocorre
essencialmente como um sistema, uma ordem, no mínimo criando uma relação
de dois. O efeito de sentido, o significado, como terceiro elemento.
Por muito tempo, Lacan considerava o que chamava "o
sujeito" como sendo um efeito de sentido. É a hipótese mais simples,
dado que - na análise pensamos que é através das palavras e efeitos de
sentido que se transforma o sujeito, então o mais evidente é considerar o
sujeito, ele próprio, como um efeito do significante, que responde à
cadeia significante. Finalmente, todo o esforço de Lacan foi - a partir
de seu ponto de partida - acrescentar o quarto elemento, quer dizer, o
elemento libidinal. O divertido é que, vinte anos depois da construção
desse elemento libidinal nesta estrutura, fundamentalmente saussuriana
ou jakobsoniana, acabou por comprender que não era suficiente, que o
objeto "pequeno a" era um artifício fraco demais para dar conta da
instância, da pressão, da importância da libido freudiana. Isto é dito
no Seminário XX. Finalmente, o objeto "pequeno a" é um semblante, e em
comparação com a função do gozo, fica aquém, não dá conta. Foi depois
desse Seminário que começou a repensar tudo, não pensar o gozo a partir
do "significante-significado", do algoritmo inicial, senão repensar este
algoritmo inicial a partir do gozo, que é uma tentativa e tanto. Neste
momento, é como se o ensino de Lacan saísse de sua própria lógica, ou
fosse conduzido até seu próprio limite; há algo assim como um salto, e a
tentativa de ver tudo o que se tinha a partir de uma outra perspectiva,
como um anti-Lacan. Muitas coisas que depois surgem, parecem ser de um
anti-Lacan, uma crítica de Lacan. Como se Lacan tivesse se tornado
suficiente mente velho para dar, ele mesmo, um passo além de Lacan.
Assim, a última parte de seu ensino me parece que é uma espécie de
tentativa de Lacan para ir além de Lacan, do algoritmo lacaniano. Ao
mesmo tempo, não se pode dizer que teve - nesta perspectiva - o mesmo
sucesso que na primeira parte; uma vez que não dispôs de um algoritmo
tão forte quanto o primeiro; a própria idéia de um algoritmo que
funcione não corresponde à perspectiva da segunda e última parte.
Agora, quando vocês bem assinalam que há distinções
sobre a letra entre um momento e outro, é por causa disso. É claro que
Lacan já havia encontrado esta instância da letra antes, por exemplo, se
pensamos na Carta Roubada. Lacan assinalava num primeiro momento, a
insistência mesma da carta, que se me lembro bem, é a rainha quem a
amassa, e é o ministro que percebe isso, e Lacan diz que nenhum analista
descartaria este resto, que é a carta amassada. Assinalando isto, para
além do significante e do significado. O significante em seu efeito de
significado foi consumido, quando lemos a carta e a podemos entender, já
se efetuou a ação do significante; ademais, existe algo que é o objeto
material, que vem por acréscimo, que é um objeto que está invisível na
palavra. Na fala, o significante se desvanece. É claro que agora temos
aparelhos que permitem à palavra tornar-se escritura imediatamente, como
quando se utiliza um gravador. O gravador, sendo material, tem a mesma
função que a carta amassada.
É este elemento que quando Lacan fala de Gide,
também assinala esta materialidade própria das cartas que permite à
senhora Gide queimá-Ias. Para machucar, Gide queima as cartas de amor
enviadas por ele, que as considerava a mais bonita correspondência
amorosa do mundo. Toda a leitura de Lacan termina na materialidade da
carta que, uma vez queimada como coisa, ou uma vez queimado o objeto, o
significante e o significado se desvanecem, porque não havia outros
exemplares, havia um só de cada; se tivessem sido fotocopiadas, a
senhora poderia ter queimado as cartas sem maiores conseqüências.
É essa mesma função que figura, no que diz Lacan,
como uma espécie de suplemento. Quando ele escreve Lituraterre, faz
desta materialidade o centro da operação literária, faz da litura do
dejeto o centro ao redor do qual gira a própria literatura, que não gira
ao redor do mecanismo que vincula o significante ao significado, senão
que gira ao redor da litura, e é por esta razão que seu texto começa com
uma homenagem a Samuel Beckett e a seus personagens que falam desde a
lixeira.
A perspectiva sobre o gozo também se inverte
porque, na primeira parte do ensino de Lacan, do gozo antes do
significante não se podia dizer muito. Falava-se somente do resto que
fica da libido, depois da operação significante. Corresponde bem ao que
diz Freud quando fala da deslibidinização do corpo, e que a libido se
concentra em algumas zonas residuais. No último ponto de vista de Lacan,
é como se ele tentasse se localizar no gozo primário, para situar o
significante a partir deste ponto de vista. Ou seja, é nessa
circunstância que pode finalmente problematizar o que esse significante
tem de estranho, como se introduz o significante a partir do gozo de um
ser vivo, e como se destaca, dentro dos significantes, um significante
organizador, um significante amo.
De tal maneira que, no primeiro ponto de vista é
como se o problema, como se o conceito essencial fosse o conceito do
Outro, enquanto lugar do Outro, enquanto sistema simbólico, mas não um
sistema puro, porque tem um desejo, também do Outro. E, na última
perspectiva, o conceito essencial é o conceito do Um, que deve ser
pensado na distinção do Outro, isto é, na primeira perspectiva, a
questão é a do sistema do significante e, na segunda, da existência do
significante como tal.
Obs: Agradecemos a Jorge Forbes a revisão técnica.
Obs: Agradecemos a Jorge Forbes a revisão técnica.
http://www.marciopeter.com.br/links2/entrevistas/entrevistaJacques.html
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