Em seus últimos dias de vida, Jacques Lacan era um homem triste,
frágil e cansado. Era um velho. Mas a morte jogou-o novamente no
primeiro plano, obrigando a uma reapreciação do uso que fez da
linguística para a decifração de Freud. Gilles Lapouge refaz a trajetória desse intelectual e recorda a curta, porém marcante, convivência que teve com LACAN.
Ele não realizava mais seminários. Depois de tanto barulho, tudo em
torno dele era silêncio. Não era mais visto nas ruas de Sant Germain des
Près. Ou, quando se aventurava fora de casa, nestes últimos meses, não
mais era aquele personagem suntuoso, o "magnífico", envolvido em peles,
mas sim um homem triste, frágil, cansado, que caminhava lentamente
arrastando os pés. Um velho.
Em torno dele os rumores ferviam: discípulos, inimigos e aduladores
davam as notícias mais desencontradas sobre Lacan, como um telégrafo que
assinalasse a posição de um navio perdido no Ártico ou, ao contrário,
anunciasse que esse navio descobrira novas terras: "Ele está empenhado
em um último combate, o mais perigoso de sua vida, está procurando
formalizar a teoria psicanalítica através da matemática, e precisa de
solidão", diziam uns — a que respondiam outros: "Ele está liquidado,
não pode mais nem falar. Ficou louco, vai ser internado." E comentavam:
"Belo símbolo, o mais célebre dos psicanalistas acabando sua vida em um
hospício...". Ou ainda: "O clown, o bufão, o histrião chegou ao fim.
Representou todos os seus números, fez-nos rir durante muito tempo,
apaixonou-nos — mas era tudo vento. Seus bolsos agora estão vazios, não
há mais pó, dentro deles, para que ele o atire nos nossos olhos. Hoje
ele é apenas um acrobata que não consegue mais fazer seu número".
Eis que de repente o gênio, ou o liquidado, ou o acrobata, morre. E
todo mundo se espanta. Sua morte surpreende. E, no entanto, Lacan era
um homem muito velho, nascido em 1901, partícipe dos mais ativos do
grupo surrealista, com Breton e Aragon, desde 1918. Mas a celebridade só
chegou muito tarde, mais precisamente em 1966, quando ele já estava com
65 anos e decidiu-se a publicar seu primeiro livro, composto pelas
aulas que dava em seu seminário, o Écrits, editado
pelas Editions du Seuil. (Vale um parêntese: este homem que seus
inimigos denunciavam como vaidoso, esperou chegar aos 65 anos para se
colocar finalmente sob os refletores da publicidade).
É verdade que, antes de 1966, não é que Lacan fosse um ninguém: ele
era conhecido, reverenciado e adulado, embora apenas por um restrito
círculo de psicanalistas e filósofos. Os outros, o grande público culto
sabia que existia e oficiava em Paris, há 30 anos, um personagem
enigmático, fascinante, uma espécie de xamã — Jacques Lacan — que
distribuía o seu saber, um pouco à maneira de Sócrates, apenas por meio
da palavra: um saber devastador, cortante, temível, graças ao qual a
psicanálise, edulcorada pelas modificações da escola anglo-saxônica,
pôde finalmente se transformar naquilo que Freud queria que ela fosse,
"uma peste".
Foi durante esse longo período de segredos, sussurros e
inconfidências que se forjou a lenda de Lacan, lenda que, a seguir, a
partir de 1966, quando virou moda, transformou-se num verdadeiro câncer.
Diga-se, aliás, que o próprio Lacan nada fez, jamais, para impedir sua
proliferação. Estranhamente, desse homem, que se tornara uma vedette
mundial há 15 anos, a rigor nada se sabia. Enquanto se conhecia tudo
sobre Freud, sua família, sua infância, no que dizia respeito a Lacan
estava-se na mais completa escuridão. Sabia-se apenas que ele nascera em
Paris, de família rica, em 1901. Nos anos 20, jovem psiquiatra
brilhante, interessava-se tanto pela poesia como pelas doenças mentais,
convivendo ora com os loucos ora com os escritores surrealistas.
Loucos ou, de preferência, loucas, já que Lacan tinha uma acentuada
predileção pelo discurso delirante das mulheres, fossem elas místicas ou
assassinas.
Sua tese inspira Salvador Dali e Genet
Sua tese em medicina, publicada em 1932, era sobre o "caso Aimée" — história das irmãs Papin, que inspirou Genet a escrever As Criadas (Les Bonnes). Uma tese sobre a "paranóia crítica" — e foi Lacan quem forneceu a Salvador Dali sua teoria da paranóia crítica.
Mas, com o correr dos anos, ele se afastou dos surrealistas e
mergulhou no trabalho. Em 1936, em Rône, fez um discurso que se tornou
célebre nos círculos especializados sobre o Stade du Miroir — o "estágio do espelho" —, no qual já se reconhecem todos os fundamentos do imenso edifício que erguerá mais tarde.
Ao mesmo tempo, trabalha muito, seja na prática clínica, seja através
de encontros (Lacan conhece bem Georges Bataille, escritor maldito por
excelência, reconhecido hoje, com quase meio século de atraso, como o
espírito mais violento da literatura francesa de antes da guerra),
seja, enfim, por seguir certos ensinamentos. A partir de 1936, e até
1939, ele assiste aos seminários dados em Paris por um homem igualmente
desconhecido do grande público — e, ainda assim, segundo Heidegger, um
dos mais poderosos filósofos do seu tempo, Alexandre Kojève.
Kojève, que morreu em maio de 1968, é, sozinho, já toda uma aventura.
De origem russa, mas muito atraído pela filosofia alemã, chega a Berlim
por volta de 1930. Lá, frequenta os cursos de alguns mestres como
Husserl, mas cansa-se rapidamente e ei-lo, então, apátrida, em Paris, em
1936. Propõe a realização de um curso sobre Hegel, à época totalmente
desconhecido em França. Dará esse curso durante três anos. E seus alunos
serão Raymond Aron, Raymond Queneau, Georges Bataille, Maurice Merleau —
Ponty, Alexandre Koyré — às vezes até André Breton — e Jacques Lacan.
Depois da guerra Kojève abandonará a filosofia, tornando-se um dos
melhores peritos franceses em economia e finanças, a eminência parda de
todos os que tomam decisões em matéria financeira, inclusive os
administradores de de Gaulle.
Mas voltemos a Lacan. Depois da guerra ele prossegue em seu trabalho,
prático e teórico ao mesmo tempo. Realiza um seminário por semana, em
Sainte Anne, um hospital psiquiátrico parisiense, assistido por
médicos, psiquiatras, psicanalistas. Só que, com o tempo, sua
personalidade torna-se pesada demais para as sapientérrimas
instituições psicanalíticas francesas, e em 1964 dá-se a ruptura: Lacan
deixa a instituição e funda sua própria escola, a Escola Freudiana de
Paris.
Seus seminários são assistidos por uma multidão
A partir de 1966, inaugura-se um novo período. Primeiro com a
publicação dos Écrits, fazendo com que Lacan seja louvado não só na
França como nos meios cultos do mundo inteiro. Segundo, seu seminário
muda de sede: do hospital de Sainte Anne vai para a Escola Normal
Superior — o templo da cultura francesa — local de formação dos mais
brilhantes intelectuais parisienses.
Os seminários de Lacan tornam-se, a partir daí, um acontecimento ao
mesmo tempo intelectual e mundano. São frequentados por uma multidão:
jovens filósofos, psicanalistas — e senhoras do tipo chic, as dames cultivées.
Para conseguir lugar sentado é preciso chegar uma ou duas horas
antes. Na assistência reconhecem-se com frequência nomes como Michel
Foucault, Philippe Solers, escritores de vanguarda.
O mestre chega: entra caminhando devagar, instala-se cuidadosamente à
sua mesa. Olha a sala vagamente, respira, suspira — como um atleta se
concentrando — e começa a falar. Em uma voz inicialmente quase
inaudível, aos arrancos, aos sussurros, faz paradas súbitas, hesita,
gagueja. Com frases subitamente invertidas, leves, aéreas, uma rápida
incursão pela filosofia de Hegel mais um jogo de palavras, uma grosseria
inominável e um silêncio interminável — ele dá a impressão de que não
conseguirá continuar nunca mais, calou-se para sempre, a platéia aguarda
fascinada, corações batendo, respiração presa — e ele recomeça a falar,
com doçura, fluência, o discurso sobe, sobe alto, e plana finalmente.
Nem há dúvida que tudo isso era composto, montado, como no teatro.
Tudo improvisado, mas nada ao acaso. Tudo artifício — mas qual o orador
que não é um homem de artifícios?
E somos forçados a reconhecer que Lacan foi o mais extraordinário mágico da palavra que já nos foi dado escutar.
Ao mesmo tempo, ele continuava a dirigir a Escola Freudiana de Paris,
reunindo, agora, tudo o que havia de mais brilhante entre os
psicanalistas franceses. Mas — e como em toda instituição psicanalítica
— os dramas são constantes. Há expulsões, tempestades, brigas, e Lacan
provoca, desafia, detestando e desprezando tanto os que o adulam da
mais beatífica das maneiras como os que não se lhe submetem.
Aos poucos, em pequenos grupos, os psicanalistas vão saindo da Escola
Freudiana, e outros os substituem — mas Lacan vai ficando amargo. Tem o
sentimento, cada vez maior, de que sua palavra não é ouvida, que os
seus ensinamentos terminam em malogro, e num belo dia de 1980, aos 79
anos de idade, estoura a novidade, chocante: Lacan resolveu dissolver a
Escola Freudiana de Paris, o edifício mais importante de sua vida.
Pânico. Agitação. Insultos e denúncias. Há quem o ataque, há
quem cerre fileiras em torno do mestre. Ele fundará outra
instituição, sem dúvida — mas a partir desse momento começa como que a
apagar-se, deixa de ser visto, fala pouco, não reina mais, no interior
da psicanálise, a não ser como uma ausência devorante, um vazio em torno
do qual o ar turbilhona alucinadamente.
Depois, a morte.
Esta é a carreira visível de um homem que faz parte da lenda
parisiense desde 1968. Uma lenda, diríamos, histérica. Em que ele é
vítima dos piores rumores. Lacan teria dado de presente um chicote de
ouro à atriz Jeanne Moureau. Teria insultado o embaixador francês em
Roma. Teria... teria... Só que nenhum dos rumores se confirma.
A única coisa certa que ele tem, realmente, caprichos de grande
coquette, de "diva". Gosta, realmente, do perfume de escândalo, de
provocação, que o acompanha sempre. É certo também que ele exige que os
seus pacientes, seus analisandos, lhe paguem regiamente, preços
exorbitantes, por sessões que, dizem, são cada vez mais curtas — às
vezes de apenas alguns minutos — em que, com frequência, ele não diz uma
só palavra.
Circulam em Paris histórias sobre seu mau caráter, sua fatuidade,
vaidade, orgulho, estranhas maneiras. Eu o conheci: e nele vi, apenas,
sempre um homem muito simples, um homem que lutava, com uma coragem
assombrosa, contra o enigma da psicanálise, um trabalhador encarniçado.
Conheci-o em 1966, quando publicou seus Écrits. Pedira-lhe uma entrevista para uma publicação semanal, Le Figaro Littéraire.
Inicialmente ele me submeteu, por telefone, a uma espécie de pequeno
exame, para ver se eu tinha algumas noções, ainda que vagas, sobre
psicanálise. Ao que parece passei no exame, e ele me marcou encontro
para uma das noites seguintes, às dez horas — estranha hora.
Chego, e encontro um personagem muito amável, muito cortês.
Oferece-me charutos e whisky, e pede-me que lhe faça minhas perguntas.
Ouve atentamente, a cabeça inclinada. Suspira profundamente, e começa a
responder. Utilizando a linguagem mais simples, mais clara do mundo,
nada tendo em comum com a prosa preciosa, à Ia Mallarmé, erudita, dos
Écrits.
Fala durante muito tempo. Já são quatro horas da manhã quando ele me
acompanha até a porta do seu prédio. Revi-o oito dias mais tarde, para
alguns esclarecimentos. De noite, novamente, e por volta da meia-noite
ele me propôs que fôssemos a um restaurante, para jantar.
Encontrei-o mais duas vezes, e jamais sua gentileza, seu respeito
pelo outro foram desmentidos. Mas ele tinha realmente manias, destinadas
sem dúvida a alimentar a lenda. Uma manhã, por exemplo, às seis horas,
meu telefone tocou. E era o doutor Lacan, me contando uma história sem
grande interesse, e absolutamente não urgente.
Quanto às suas teorias, seria uma impertinência tentar resumi-las.
A teoria lacaniana foi elaborada ao longo de 30 ou 40 anos de prática
clínica e de reflexão teórica sobre essa prática, complicada ao máximo,
sofisticada ao último grau, fazendo referência a toda a cultura do
mundo, desde a História e a mitologia, a poesia e a pintura, até Hegel,
Kant ou Sade e às formas mais áridas da matemática moderna, sem
esquecer a etnologia, a linguística, e todos os recursos daquilo a que
chamamos retórica.
Assim, vamos nos limitar a indicar, de um lado, o que essa teoria não
é, e, de outro, qual o eixo, a espinha dorsal dessa teoria. Primeiro
poderíamos ser levados a acreditar que um homem tão cheio de som e
fúria, provocador, iconoclasta, tivesse virado as costas ao "pai"
fundador, a Freud. Pois nada disso: Lacan nunca mudou. O que ele
pretendeu foi um "retorno a Freud". Empenhou-se em sua leitura, com
cuidados ciumentos, meticulosos, sem em momento algum traí-lo — ou,
pelo menos, sem ter o sentimento de traí-lo.
Poderíamos compará-lo, se quiséssemos, a Lutero, o fundador do
protestantismo, que quis efetuar um "retorno aos Evangelhos",
libertando-os da ferrugem que lhes fora acrescentada pela Igreja de
Roma. Assim fazendo, Lacan visava especialmente dois desvios do discurso
freudiano: de uma parte, o desvio pela hermenêutica religiosa,
efetuado por Jung e seus discípulos, e, de outra, o esmaecimento
sofrido pela psicanálise, ao atravessar o Atlântico, reduzindo-se de
ano em ano, cada vez mais a uma simples psicoterapia, e ao esforço de
meramente "normalizar" os doentes, tornando-os aptos a ocupar seu lugar
na sociedade, a funcionar, a produzir.
Lacan estava tão longe dessas práticas que sequer ousava dizer que o
tratamento psicanalítico destinava-se a curar. O tratamento, para ele,
destinava-se muito mais a fazer com que o paciente "reentrasse em sua
própria casa", ou seja, restabelecesse as comunicações cortadas entre o
consciente e o inconsciente, sem nem por isso ser obrigado a
descobrir, forçosamente, a "serenidade" ou a "felicidade", palavras que
não faziam parte do seu vocabulário.
A palavra-chave para ele era "verdade", ainda que essa verdade fosse devastadora, cáustica, impiedosa.
Segundo erro a não cometer: fazer de Lacan um filósofo. Em 1966 e nos
anos seguintes, no auge da glória, ele tornou-se um mago, um
mestre-pensador — e houve quem quisesse içá-lo às alturas dos antigos
mestres, particularmente ao lugar de Sartre, exigindo-lhe portanto uma
filosofia, uma metafísica. Tentação de que ele se defendeu com horror.
Clínico e teórico, sim. Filósofo nunca.
Ele é um homem de ciência, dessa ciência que é, segundo ele, a
psicanálise de Freud — e é precisamente o estatuto científico dessa
psicanálise que ele quer estabelecer em sua obra. Não há dúvida que o
seu discurso é sobrecarregado de filosofia, e que inspira os filósofos —
mas este é um efeito secundário, indireto, pelo qual Lacan se recusa
definitivamente a se interessar.
Portanto, a idéia é conferir à psicanálise o estatuto de ciência. E é
aqui que intervém o uso da linguística — que também passou a ser
ciência, desde os trabalhos de Saussure — uma ciência-serva, se assim
quisermos, fiadora e tela de fundo da ciência psicanalítica. E como é
que a linguística entra nisso?
Lacan volta a Freud, mas lê-o com óculos que não existiam no seu
tempo, os óculos da linguística, fundada por Saussure precisamente com
base em Freud. Para Lacan, Freud não descobriu o inconsciente: os homens
já o haviam reconhecido há centenas de anos. Basta pensar nas pítias,
na mitologia, em Hamlet, Leonardo da Vinci, Sófocles. Os homens sabiam
que por baixo do pensamento coerente, "acordado", estendem-se imensos
arquipélagos submersos, censurados, que formam o inconsciente. Donde,
Freud não descobriu o inconsciente: aprendeu somente a escutá-lo, a
decifrá-lo.
Lacan costumava fazer uma bela comparação: antes que Champollion, no
começo do século XIX, decifrasse os hieróglifos egípcios, os hieróglifos
já estavam lá há muito tempo. E falavam — só que ninguém entendia o que
eles diziam. Champollion encontrou a chave, e, de súbito, toda a
antiguidade egípcia nos foi devolvida.
Freud fez o mesmo, e a comparação vai ainda mais longe, já que o seu
golpe de gênio segue exatamente o mesmo método do golpe de gênio de
Champollion. Antigamente, quando se capturava uma palavra do
inconsciente, uma imagem de um sonho, por exemplo, procurava-se
compreender o sentido daquela palavra, daquela imagem. Da mesma forma,
antes de Champollion, procurava-se compreender o sentido isolado de cada
desenho de uma tábula egípcia— um íbis, por exemplo, ou uma balança — e
não se chegava a parte alguma. Champollion teve a ideia de interpretar
a série dos símbolos, sua sequência, seu inter-relacionamento, sua
ordem, por ter compreendido que um símbolo nada quer dizer se retirado
da cadeia significante. Para traduzir uma língua desconhecida ele usou
não um dicionário, mas uma gramática e uma sintaxe. Freud fez o mesmo: e
trabalhou sobre todo o sonho, ou todo o discurso do inconsciente,
observando como cada uma das suas diferentes secções, suas imagens
sucessivas, se organizam umas em relação às outras, se entrecruzam. Em
suma: ele examina não mais o discurso palavra por palavra, mas em sua
estrutura completa. E traduz esse discurso como se traduz um texto do
grego ou do latim, reencontrando sua sintaxe e sua gramática.
Assim fazendo, Freud descobriu que esse discurso do inconsciente,
longe de ser desorganizado, incoerente, anárquico, obedecia a leis
rigorosas, estáveis, permanentes — leis precisamente iguais às da
linguagem consciente, só que "disfarçadas" pela censura. O que nos leva a
pensar na censura no domínio político.
Um regime tirânico decreta a censura. Que se passa então?
Todo o discurso do país é cortado, proibido. Ainda assim, não se
interromperá, não parará. O país continua a falar, mas clandestinamente,
como o inconsciente, apesar da tirania do consciente, que continua a
falar "sob" o discurso oficial (o discurso consciente, no caso do
indivíduo, o discurso do senhor, no caso da ditadura). E fala de modo
que o tirano não o entenda, disfarçando-o.
Um jornalista, por exemplo, em lugar de denunciar claramente esta ou
aquela prática, vai fazê-lo por meio de um símbolo complexo. O mesmo
para o indivíduo: um desejo sexual me atormenta, por exemplo, mas minha
formação, minha educação, impedem-me de falar nele, e até de
reconhecê-lo. Assim, o desejo não desaparece, mas vai expressar-se em
linguagem camuflada, clandestina, incompreensível.
A psicanálise é portanto a arte de descobrir as leis que esse desejo
utiliza para se manifestar sem se trair — leis que são as mesmas que as
da nossa linguagem quando acordados, com sua gramática e sua sintaxe,
mas torcidas, disfarçadas.
Lacan dá muitos exemplos desse decifrar-se, mostrando, por exemplo,
que formações bem conhecidas do sonho, a que chamamos "condensação",
seguem exatamente as mesmas regras das formas de retórica, a metonímia, a
metáfora, etc. Assim, pela primeira vez, com Freud, os hieróglifos do
inconsciente podem ser lidos. Pela primeira vez, o formidável Egito
antigo que cada um de nós guarda no inconsciente torna-se perceptível,
pode ser ouvido, e conseguimos pôr-nos em comunicação com esse
território submerso.
A tudo isso faz-se uma objeção: isto é Lacan. Não pode ser Freud, já
que as leis da linguística que Lacan aplica para decifrar o inconsciente
eram ignoradas na época de Freud. "Prova — retruca Lacan — da
genialidade de Freud. A linguística ainda nem existia e ele já forjara
um instrumento de decodificação que só podia funcionar com a
linguística! Profético, Freud estava muito à frente de todos os outros —
mas foi preciso a linguística para que pudéssemos apreciar e utilizar
plenamente a revolução copérnica que ele realizou." E Lacan costumava
acrescentar ainda que todos os textos de Freud, se lidos com atenção,
mostrariam um combate áspero, violento, com a linguagem.
O que é rigorosamente verdade. Basta citar, por exemplo, a
importância dada por Freud ao calembur (refúgio privilegiado do discurso
do inconsciente), ao trocadilho, ao lapso, ao ato falho, etc. E,
enfim, o que é realmente a cura psicanalítica de Freud? Uma cura da
linguagem pela linguagem. O paciente fala. O psicanalista escuta,
decifra esta ou aquela palavra. Decifra o discurso. Do começo ao fim, a
psicanálise é questão de linguagem.
Claro que esse nosso resumo é indigente. Reduz e empobrece
terrivelmente o texto de Lacan — mas não nos é possível ir além disso.
Teríamos de introduzir aqui muitas outras noções: o estágio do espelho,
as três instâncias do real, do simbólico e do imaginário, o objeto
pequeno, o outro. Mas tudo isso é de um tal refinamento, de uma
complexidade tão vertiginosa, que não é possível incluí-lo em um artigo
de jornal. Falta só afirmar que tudo se deriva dessa constatação
original: "O inconsciente é estruturado como uma linguagem".
A psicanálise permite traduzir o discurso do inconsciente, para
rearticular o indivíduo sobre essa radical dele mesmo que é
inconsciente, a fim de reintegrar sua própria verdade.
Esta palavra — "verdade" — retorna de maneira obsessiva, em Lacan. O
que até surpreende. Como se houvesse uma verdade, como se, admitindo
que a verdade existe, o espírito do homem pudesse capturá-la,
subjugá-la. Mas a força de Lacan consiste exatamente em fazer, de uma
impossibilidade, um formidável trampolim teórico para ir mais longe.
Assim com a noção de "verdade", com a qual ele se exibe "como um pavão",
segundo os seus inimigos, ou "como um homem em busca do Santo Graal",
segundo os admiradores.
0 homem é um ser fabricado pela linguagem
Há três anos, aproximadamente, a televisão francesa, não sem coragem,
emprestou suas câmeras a Lacan. E vimo-lo, então, na pequena tela. Suas
primeiras palavras foram: "Eu digo sempre a verdade". Os espectadores
prenderam a respiração. Quem era, afinal, aquele pretensioso, aquele
homem que avançava, tocha flamante na mão, usando a linguagem de um
profeta, ou de um deus?
"Eu sou a verdade." E, depois de um silêncio, "mas não toda a
verdade, porque não é possível dizê-la toda. Faltam-nos as palavras. E é
exatamente por causa dessa impossibilidade que a verdade se torna
verdadeira".
Perfeito: em três frases cintilantes, ele disse tudo: que o homem é
um ser da linguagem, um ser fabricado pela linguagem e fabricante de
linguagem, mas que a linguagem é impotente para revelar a totalidade do
mundo, e que é desta falha, deste abismo que separa as palavras e as
coisas, que o real emerge. A isso acrescentaremos que essa tentativa
sacode os fundamentos de toda a filosofia, portanto do ser, do
Ocidente.
Formalizar o inconsciente segundo a matemática
Freud, repetido ou explicado por Lacan, opera um putsch
filosófico, um golpe de Estado. "Descentraliza" o "eu" cartesiano.
Abole a fórmula real, fundadora do Ocidente, o "Penso, logo existo",
de Descartes. Com Descartes o homem só é pensando, e pensa a partir do
centro de si mesmo. Com Lacan e Freud tudo isso é dilapidado, tudo é
jogado para o alto. Não podemos mais dizer hoje em dia "Penso, logo
existo", mas, mais dramaticamente — e aqui deixamos o texto em francês
—, "Je pense où je ne suis pas, je suis où je ne pense pas", frase em
que a palavra où, com seu acento grave, passa a significar advérbio de lugar — onde — e não a alternativa ou,
do famoso "Ser ou não ser". O que traduz, em outros termos, a ruptura, o
corte, a separação que corta cada um de nós entre essas duas
instâncias, radicalmente estrangeiras uma a outra, mas influenciando-se
mutuamente, que são o "consciente" e o "inconsciente".
E percebemos assim as convergências, os encontros passíveis de serem
anotados entre o pensamento de Freud, Lacan e o de outros mestres das
ciências humanas, Lévi-Strauss ou Michel Foucault, que também anunciam o
fim do homem, a morte do homem — pelo menos no mundo ocidental —, do
"eu" cartesiano.
Mas não prolonguemos demasiadamente as considerações filosóficas que
o próprio Lacan negligencia, ainda que elas alimentem há dez anos as
mais vivas reflexões francesas. Voltemos, antes, a essa existência em
parte clownesca e infatuada, de outra. E é a única que nos interessa
reter, genial, patética e heróica. Pois que, se a genialidade de Lacan é
desde já irreversível, se ele já pertence à história da cultura, ainda
que só por causa das rupturas, das descobertas que o seu discurso
obscuro e soberbo causou nas gerações de homens de 20 a 40 anos, foi ao
preço de um trabalho desesperado, de um combate mortal que Lacan o fez.
Já quase no fim da vida, esse incorrigível viajante quis ir ainda
mais longe em sua formalização. O modelo linguístico não mais lhe
parecia suficientemente sutil ou rigoroso para dar conta dos meandros
do discurso do inconsciente, e ele passou a formalizar o inconsciente
segundo o modelo matemático. Lacan já estava velho, e sobretudo cansado.
Seus seminários eram dados cada vez com mais dificuldade. Continuavam
sendo seguidos por um núcleo de fiéis, mas nada que se comparasse às
multidões extasiadas dos anos 70.
Não assisti a nenhum deles, mas ouvi repercussões. Agora, Lacan subia
ao estrado, desenhava em um quadro-negro gráficos, fórmulas matemáticas
de uma aridez cada vez mais austera. Já não falava quase, ficava por
muito tempo parado diante dos seus gráficos como que paralisado ou
fulminado, tentando avançar, compreender as suas próprias fórmulas, e às
vezes — nem sempre — o discurso renascia, soberbo como antes — e depois
ele tornava a se calar.
Às vezes, segundo me disseram, durante toda uma longa sessão sequer uma palavra era dita.
Além disso, ele levava sempre nos bolsos cordões de cores diferentes,
com os quais montava modelos matemáticos que deveriam reproduzir a
topologia do discurso do inconsciente. Mas também com os cordões ele se
embaraçava — e uma vez, até, segundo me contou um dos seus mais fiéis
adeptos, em um dos últimos seminários que realizou, até com os gráficos
ele se atrapalhou, não sabia mais o que pretendia, e lá ficou, mudo,
vencido, desfeito. A reação dos seus alunos, espontânea, comovida, foi
assegurar-lhe: "Nós o amamos, o amamos muito".
Lacan: talvez, realmente, um homem cheio de traços contestáveis. De
um orgulho provavelmente exagerado, como sua violência e seu gosto pelas
disputas — mas o gênio é sempre exigente, o gênio é um devorador. E,
de qualquer modo, o que desejaríamos guardar disso tudo, no momento em
que a sua imensa voz, às vezes balbuciante, se calou para sempre, é a
imagem de um velho frágil, que perdeu toda a soberba, parado diante de
um quadro-negro com seus cordões coloridos, como uma criança que
esqueceu a resposta. Um velho imperador, não decaído, porque ninguém
foi mais longe do que ele — mas vencido pelo seu próprio gênio, a quem
tudo o que os alunos encontraram para dizer, no fim, foi que o amavam.
(artigo publicado no caderno Cultura do jornal O ESTADO DE S. PAULO em 18/10/1981)
http://www.jorgeforbes.com.br/br/movimento-analitico/lacan.html
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