Normalmente, aqueles que mais têm a palavra “democracia” na boca são
os que, no fundo, menos acreditam nela. Eles se portam como defensores
dos valores democráticos apenas para conservar desesperadamente as
imperfeições que a versão atual da democracia é incapaz de superar. Na
verdade, quando repetem que “a democracia é o pior sistema, mas o único
possível”, é porque amam suas distorções. Pois a única posição realmente
fiel ao conteúdo de verdade da democracia consistiria em dizer: a
democracia não está realizada, ela é uma ideia por vir.
Isto não significa que a realização imperfeita de uma ideia seja
completamente falsa. A democracia por vir não é a negação simples, a
recusa absoluta da democracia que temos atualmente. Mas ela é a mudança
qualitativa de seus dispositivos e construção de novas dinâmicas de
poder.
Podemos mesmo dar três razões que nos permitem compreender por que
esta democracia por vir ainda não veio. Uma delas é a confusão
deliberada entre o jurídico e o político. A verdadeira democracia admite
situações de dissociação entre o ordenamento jurídico e exigências de
justiça que alimentam as lutas políticas. Esta dimensão extrajurídica
própria à democracia nos lembra que há uma violência eminentemente
política que sempre apareceu sob a forma do direito de resistência e do
reconhecimento do caráter provisório das estruturas normativas do
direito. A estabilidade institucional da democracia não significa a
perenidade absoluta do ordenamento jurídico atual. Ela significa que a
instabilidade da violência política, uma violência que não é a simples
eliminação simbólica do outro, será reconhecida no interior mesmo das
instituições sociais.
O segundo ponto é o medo atávico da participação popular direta. As
estruturas representativas da democracia parlamentar foram criadas para
suprir a impossibilidade material da presença física da população no
processo de deliberação legislativa cotidiana. Hoje, com o
desenvolvimento tecnológico e com o advento das sociedades de alta
conectividade, foram dadas as condições materiais para o início de uma
verdadeira democracia digital. Vários processos deliberativos podem
passar para a esfera da deliberação plebiscitária.
O terceiro ponto diz respeito à relação de reconhecimento entre
Estado e cidadão. Não é possível pensar o campo da política sem o
Estado. É ele que permite a ampliação de escala de processos gerados na
esfera local. É ele que permite a implementação institucional da
universalidade. No entanto, vivemos em uma época de esgotamento do
Estadonação com suas exigências de conformação identitária e sua
capacidade de gerir processos econômicos em sua fronteira. Este fim do
Estado-nação pode dar lugar a dois fenômenos: o retorno paranoico a
identidades profundamente ameaçadas ou o abandono da identidade como
operador político central. Isto significa não a anulação deliberada de
toda e qualquer demada identitária, mas a construção de um espaço
político de absoluta indiferença às identidades; de uma política da
diferença à implementação política de zonas de indiferença. Isto implica
um estado capaz de socializar sujeitos em seu ponto de indeterminação.
Ou seja, a função do estado não pode ser a determinação completa dos
sujeitos através da gestão de processos disciplinares e de controle. Sua
função é a gestão da indeterminação. Isto pode se dar, por exemplo,
através da eliminação de aparatos jurídicos ligados à perpetuação de
hábitos e costumes.
Por fim, não é possível pensar problemas ligados à democracia sem
pensar os riscos advindos da consolidação de grandes conglomerados
globais de mídia. Eles têm tendência a monopolizar discussões sobre
liberdade de expressão sem nunca discutir as redes de interesses
econômico-financeiros que permeiam tais conglomerados e direcionam sua
expressão. Da mesma forma, eles tendem a não discutir como setores da
opinião são, muitas vezes, marginalizados.
http://revistacult.uol.com.br/home/2012/12/a-democracia-que-nao-veio/
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